sexta-feira, 23 de maio de 2025

O Despertar Filosófico: Como Começa a Jornada de um Pensador.


O Despertar Filosófico: Como Começa a Jornada de um Pensador

"A filosofia começa no assombro." —Platão

Toda grande jornada começa com um passo silencioso, muitas vezes imperceptível aos olhos de quem está de fora. O despertar filosófico não é diferente. Não se trata de um momento grandioso de iluminação mística, mas de um movimento interior, uma inquietação sutil que irrompe no meio do cotidiano. Uma dúvida se infiltra entre as certezas habituais e nos arranca da superfície da vida. Assim começa a jornada de um pensador.

A maioria das pessoas vive como quem anda por trilhos: segue-se o curso da vida conforme as convenções sociais, as tradições familiares ou os impulsos do momento. Mas, em algum ponto, para alguns, isso não é suficiente. Um jovem, talvez diante de um sofrimento, de uma injustiça ou simplesmente de uma noite silenciosa, pergunta: "Por quê?"

Essa pergunta, aparentemente simples, carrega em si uma revolução. É o momento em que o mundo deixa de ser apenas vívido e começa a ser pensado. Nesse instante nasceu o filósofo. Ele ainda não sabe que o é, mas já foi tocado pelo espírito da sabedoria — philo-sophia .

O que diferencia o filósofo do curioso é a insistência. Enquanto o curioso pergunta para matar o tempo, o pensador pergunta para matar a ignorância. Ele não se contenta com respostas simples, não se satisfaz com slogans ou modismos. Ele quer compreender as causas, os princípios, as essências.

Nesse sentido, a dúvida não é o fim da certeza, mas o início da busca. É o que Descartes observa ao declarar: “Penso, logo existo.” Antes de qualquer saber, há o pensamento que duvida. A dúvida, então, é fértil: prepare o solo da alma para acolher a verdade.

Na maioria das vezes, esse despertar filosófico leva o pensador a buscar mestres — antigos ou contemporâneos. São os livros de Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal, Kierkegaard ou Simone Weil que começaram a falar com uma estranha familiaridade. Não são palavras distantes, mas ecos de inquietações semelhantes.

O filósofo descobre que não está sozinho. Outros já percorreram esse caminho e deixaram pegadas. Ele aprende, então, a pensar com os mestres — não como um papagaio de teorias, mas como quem caminha com um amigo mais velho, que aponta, provoca e eleva.

Entre esses mestres contemporâneos, destaca-se a figura do professor Olavo de Carvalho . Para muitos brasileiros, ele foi o responsável por acender a primeira faísca da filosofia em meio à confusão do mundo moderno. Seu estilo direto, suas aulas marcantes e a ênfase na busca sincera pela verdade despertaram milhares de jovens do torpor intelectual. Olavo não ensinou apenas conteúdos, mas ensinou a pensar , a duvidar dos discursos prontos e a cavar fundo até alcançar os fundamentos mais esquecidos da realidade.

Um de seus conselhos mais célebres resume com claro esse espírito filosófico:

"Não queira ser original. Queira apenas ser verdadeiro. A verdade, sim, é sempre original."

Com isso, ele lembrou que o verdadeiro pensador não é movido por vaidade ou moda, mas por fidelidade ao real. O pensamento é um ato de responsabilidade diante da vida, e não uma performance intelectual.

Estudar com Olavo era, para muitos, o primeiro passo em direção ao essencial — à metafísica, à consciência moral, o autoconhecimento. Ele mostrou que o filósofo não é uma privilégio de catedráticos, mas uma vocação de todo ser humano que deseja compreender sinceramente o mundo e a si mesmo.

Para muitos, a filosofia é uma disciplina acadêmica, fria e abstrata. Para o verdadeiro pensador, no entanto, filosofar é viver. Cada gesto, escolha e silêncio passam a ser atravessados ​​por uma consciência mais desperta, mais exigente. O pensador não foge do mundo — mergulhando nele com olhos mais atentos.

Filosofar, portanto, é um ato existencial. Não é um hobby intelectual, mas uma forma de ser no mundo. É por isso que Sócrates pôde dizer que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. A filosofia transforma a vida em busca — e a busca, em plenitude.

Por fim, o despertar filosófico não é um evento isolado, mas o início de um caminho sem fim. O pensador está sempre despertando, sempre se surpreendendo, sempre começando de novo. Em cada novo autor, nova pergunta ou nova dor, ele reencontra o ponto de partida.

A filosofia não é sobre chegar a todas as respostas, mas sobre permanecer fiel à busca da verdade. Ela é, como dizia Gabriel Marcel, uma fidelidade ao mistério — não no sentido de resignação, mas de reverência. 

O despertar filosófico não é privilégio de alguns iluminados. É uma possibilidade inscrita no coração humano. Começa com uma pergunta sincera, se fortalece com a escuta dos mestres e se realiza numa vida vivida com consciência. Ser pensador, no fundo, é aprender a habitar o mundo com profundidade, humildade e coragem.

Se você já sentiu esse chamado — se já duvidou com sinceridade, buscou com paixão ou pensou com coragem — então a jornada já começou. Bem-vindo ao caminho dos que ousam pensar.


E como dizia o professor Olavo de Carvalho, mestre que guiou tantos no início de sua jornada e que foi e continua sendo também meu mestre :

“A filosofia é a arte de não se enganar sobre o óbvio.”

Que essa arte continue viva em nós, em cada dúvida sincera e em cada verdade conquistada com esforço e graça.

 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Cada passo é uma procura; cada queda, uma escola.


 Cada passo é uma procura; cada queda, uma escola.

Minha história não se desenha em linhas retas, mas em curvas delicadamente traçadas pela Providência. Desde muito jovem, fui atraído para o silêncio profundo dos mosteiros, conduzido ao mergulho na filosofia e na teologia, e conduzido também ao serviço compassivo aos que mais sofrem — primeiro em oração, depois no cuidado concreto da alma por meio da psicoterapia.

Entre livros e dores, mestres e encontros, fui sendo esculpido lentamente.
Não apenas pelas grandes mentes do pensamento, mas, sobretudo, pelas feridas da vida: dúvidas que atravessam a fé, lutas que pedem constância, alegrias discretas e renúncias diárias. Aprendi que o conhecimento sem amor é estéril, e que a vocação só floresce quando a cruz deixa de ser símbolo distante e se torna companheira constante.

Hoje, caminho com os pés firmes na terra e os olhos voltados ao Alto.
Sigo trabalhando, ouvindo, aprendendo — com o ardente desejo de integrar fé e razão, tradição e presença, contemplação e ação. Minha história é feita de carne e espírito, de noites longas e respostas que amadureceram no tempo da espera.

E sei: tudo até aqui foi apenas o início.
Cada experiência vívida foi um prólogo de algo maior. A cada amanhecer, renovo meu “sim” ao chamado que me alcançou. E prossigo, sustentado por aquela graça que, sem alarme, nunca me faltou.

Filosofar é Aprender a Morrer: Por que pensar é um Ato Revolucionário

 

Filosofar é Aprender a Morrer: Por que pensar é um Ato Revolucionário

No coração da filosofia há uma verdade desconcertante, daquelas que não se aprende nos manuais ou nos salões acadêmicos polidos: filosofar é, essencialmente, aprender a morrer. Esta máxima, atribuída a Sócrates e retomada com vigor por Montaigne, pode parecer um devaneio fúnebre aos ouvidos modernos. Afinal, quem deseja viver pensando na morte? No entanto, é justamente nessa tensão entre a vida e a morte que se encontra o poder revolucionário do pensamento.

Em uma sociedade que evita a morte como se fosse uma falha do sistema, filosofar se torna um ato de rebeldia. Vivemos rodeados por distrações, anestésicos emocionais, entretenimentos que nos prometem tudo, menos o confronto com a finitude. Pensar, nesse contexto, é desobedecer. É virar o rosto para o barulho e olhar de frente aquilo que todos evitam: o fato de que somos mortais.

Filosofar é treinar o espírito para não temer aquilo que é inevitável. É viver como quem já aceitou o fim e, por isso mesmo, se liberta do medo. Um homem que aprendeu a morrer não é facilmente manipulável. Ele não corre atrás de ídolos, não se curva diante do poder, não vive como escravo dos desejos passageiros. Ele pensa — e isso basta para ser perigoso num mundo que prefere a repetição à reflexão.

Pensar profundamente é subversivo. Por isso, em todas as épocas, os verdadeiros filósofos foram desconfiados pelos sistemas de poder. Sócrates foi condenado à morte não por blasfemar os deuses, mas por ensinar jovens a pensar. Nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado por questionar a lógica do poder e expor a hipocrisia dos líderes religiosos. Giordano Bruno foi queimado por recusar-se a calar o que pensava. Pensar é romper com a superfície. É mergulhar no abismo. É ter coragem de perguntar o que todos aceitam sem pensar.

E aqui está o centro da revolução filosófica: o pensamento autêntico não é funcional, não visa agradar, não se curva ao politicamente correto nem às modas intelectuais. Ele incomoda porque revela. Ele fere porque purifica. Ele destrói ídolos e constrói fundamentos.

Filosofar não é apenas argumentar ou escrever tratados. É, antes de tudo, silenciar. É calar as vozes do mundo para ouvir a própria alma. Em uma época onde todos têm opinião, mas poucos têm pensamento, o filósofo é aquele que, em vez de reagir, contempla. Em vez de gritar, escuta. Em vez de julgar, compreende. O silêncio do filósofo grita mais alto do que os discursos ideológicos, porque ele vem da interioridade, não da vaidade.

Este silêncio nos conduz à contemplação da verdade, que é sempre simples, mas nunca superficial. E ao se aproximar da verdade, o filósofo percebe que toda a vida é preparação para a morte. Não a morte biológica apenas, mas aquela outra morte — a do ego, da ilusão, do apego às máscaras.

Por isso, filosofar é revolucionário. Mas não uma revolução de massas, e sim de consciências. Uma revolução que começa no interior e se irradia. Quando um homem aprende a morrer, ele aprende a viver de verdade. Ele não tem mais medo de ser sincero, de amar com profundidade, de renunciar ao que é fútil. Ele é, finalmente, livre.

E um homem livre não pode ser controlado.

Pensar, portanto, é perigoso. Não porque destrói, mas porque revela. Revela que muito do que chamamos de progresso é fuga. Que muito do que chamamos de felicidade é anestesia. Que muito do que chamamos de fé é superstição. O pensador é aquele que, com humildade e coragem, se lança no deserto do real e ali encontra a Verdade, que é sempre ferida antes de ser cura.

Filosofar é morrer para o mundo das aparências, e nascer para o mundo do ser. É aceitar o martírio cotidiano de quem pensa, ama e espera — sem ilusões, mas com esperança. Por isso, filosofar será sempre, antes de tudo, um aprendizado da morte, para que possamos enfim viver.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

Silêncio e Solidão: Espaços Perdidos da Alma Moderna


 Silêncio e Solidão: Espaços Perdidos da Alma Moderna.

Vivemos tempos barulhentos. Não apenas pelo ruído das ruas, das redes sociais, dos aparelhos eletrônicos e da velocidade da informação. Vivemos sobretudo um barulho interior, contínuo e dissonante, que aliena o homem de si mesmo. O silêncio tornou-se incômodo. A solidão, um mal a ser evitado a qualquer custo. E, com isso, a alma moderna foi perdendo os espaços mais preciosos para sua escuta, cura e transfiguração.

Blaise Pascal já anunciava que "toda a infelicidade dos homens deriva de uma única coisa: não saber permanecer em repouso dentro de um quarto" . Esta frase, escrita no século XVII, parece escrita para nós, do século XXI. Incapazes de habitar o silêncio, preferimos nos ocupar. Preferimos a distração ao invés da contemplação, ou o excesso ao invés da interioridade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreve essas características como a “sociedade do cansaço”, onde o excesso de estímulos gera uma hiperatividade que nos impede de parar. Não há mais tempo para o recolhimento. E, sem recolhimento, o homem se fragmenta. Perde o eixo, desconecta-se de sua dimensão mais profunda. A alma, sem espaço, adolescente.

No Antigo Testamento, o profeta Elias encontra Deus não no terremoto, nem no fogo, mas numa brisa suave — em hebraico, um "sussurro delicado" (1Rs 19,12) . Os Padres do Deserto, herdeiros dessa tradição bíblica, ensinaram que o silêncio é o lugar onde Deus fala. O silêncio não é ausência de som, mas presença densa do essencial .

Na tradição hesicasta do cristianismo oriental, o silêncio (hesychía) é condição para a oração pura. Nele, o coração é purificado, a mente se aquieta, e a pessoa entra em comunhão com o divino. Este silêncio é terapêutico e teológico. Ele não apenas cura o psiquismo fragmentado, mas permite que a alma reencontre seu centro em Deus.

A solidão, por sua vez, não é isolamento. A solidão fecunda é diferente da fuga egoísta. Santo Agostinho distinguiu bem isso quando, ao narrar sua conversão nas Confissões , mostra como foi no recolhimento solitário do jardim que escutou o apelo divino: “Toma e lê” . A solidão permitiu-lhe ouvir algo que o ruído de suas paixões abafava.

Thomas Merton, monge trapista do século XX, dizia que a solidão é o lugar onde o verdadeiro eu posso emergir. Para ele, o homem moderno tem medo da solidão porque ela o obriga a confrontar o vazio que habita dentro de si — um vazio que, no fundo, clama por Deus.

A cultura contemporânea, marcada pelo culto à produtividade e à visibilidade, vê o silêncio e a solidão como perda de tempo. As redes sociais incentivam a exposição constante, como se a existência precisasse ser validada pelo olhar do outro. Mas o excesso de exterioridade rouba a profundidade.

O resultado é uma sociedade hiperconectada e emocionalmente desnutrida. Pessoas cercadas de vozes, mas solitárias. Vidas ocupadas, mas vazias. Mentes activas, mas confusas. Sem silêncio e sem solidão, o homem se torna superficial.

Para que a alma humana floresça, é preciso resgatar os espaços do silêncio e da solidão. Crie momentos de pausa, de contemplação, de oração. Procure um “quarto interior” onde se possa estar consigo mesmo — e, ali, encontrar-se com Deus.

Não se trata de abandonar o mundo, mas de se instalar no meio dele . Um coração que sabe silenciar carrega consigo um oásis, mesmo no deserto das multidões. Um espírito que aprendeu a estar só nunca se sente totalmente perdido, mesmo entre as distrações.

Silêncio e solidão são como dois braços que sustentam a alma. São caminhos de interioridade, portas para o sagrado, lugares onde a verdade não apenas se revela, mas transforma. A alma moderna os perdeu. Mas é possível reencontrá-los. Começa com um gesto simples: desligar o que nos dispersa, abrir o que nos conecta — e deixar que Deus fale, no fundo do coração.

Como dizia São João da Cruz: “O Pai pronunciou uma única Palavra: o seu Filho. E esta Palavra permanece em silêncio. E é no silêncio que ela deve ser escutada.”


terça-feira, 20 de maio de 2025

"Soneto da Alma Inquieta"

 

"Soneto da Alma Inquieta"

Fui jovem de ideal inabalado,
caminho firme, olhar além do chão.
Seguia a voz do céu, sacrificado,
jurando à fé eterna devoção.

II
Sofri, sorri, lutei contra o vazio,
o peito em febre, a mente em confusão.
E em mim bradava um grito forte e frio,
mas só ouvia o eco da ilusão.

III
Livre, senti-me preso em mim, sem rumo,
e preso, ansiava a liberdade vã.
O mundo, para mim, tornou-se um sumo
de angústia, dor, e paz que se profana.

IV
Tentei fugir, do pranto fiz abrigo,
deitei-me à morte, mas sem o ceder.
Faltou-me a força? Não. Faltou-me o inimigo.
Pois quem procura o fim, quer renascer.

V
Chorei em sono, e o sono me embriaga.
Comi da solidão, bebê do medo.
Mas dentro, a esperança ainda se alaga,
e em meio à noite, eu via algum segredo.

VI
E hoje, sou criança renascida,
num corpo que cansou de se calar.
Brincando com as sobras da ferida,
aprendo, enfim, o verbo: recomeçar.

— Matheus Lino Pereira

A Morte de Deus ou a Morte do Homem? O Vazio Contemporâneo e a Busca pelo Sagrado.

 


A Morte de Deus ou a Morte do Homem?
O Vazio Contemporâneo e a Busca pelo Sagrado

O século XX testemunhou o grito ecoante de Friedrich Nietzsche: “Deus está morto!” Não se tratava, como muitos interpretaram superficialmente, de um simples ataque ao cristianismo, mas de um diagnóstico existencial profundo. O filósofo alemão não celebrava essa morte, antes, alertava: a civilização ocidental, ao matar Deus — isto é, ao recusar seus fundamentos transcendentes —, iniciava um processo lento e silencioso de autoaniquilação.

A “morte de Deus” é, nesse sentido, símbolo de uma ruptura: a separação do homem moderno de suas raízes espirituais, éticas e ontológicas. Retirando a âncora que sustentava o sentido da existência, do bem e da verdade, o homem ficou à deriva num mar do relativismo, da tecnocracia e do niilismo. O século XXI é o filho órfão dessa ruptura. A pergunta que nos persegue, portanto, não é apenas se Deus está morto, mas se não estamos diante da morte do próprio homem .

Ao rejeitar Deus, o homem moderno acreditou libertar-se. No entanto, essa liberdade tornou-se um peso. A autonomia sem orientação tornou-se desorientação. Quando tudo é permitido, nada tem valor. A cultura atual, marcada pela fluidez, pela tração e pela fragmentação, revela um homem cansado, sem pátria interior, consumido pela ansiedade e depressão — sinais de uma crise de sentido.

Como observa o psiquiatra Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração e autor de Em Busca de Sentido , a maior tragédia contemporânea não é o sofrimento, mas o vazio existencial. O homem já não sabe por que vive, tampouco por quem morreria. Isso o torna frágil, manipulável, escravizado por ideologias ou prazeres instantâneos.

As grandes promessas do iluminismo — razão autônoma, progresso indefinido, ciência como única luz — produziram um mundo mais funcional, mas não necessariamente mais humano. Temos tecnologias avançadas, mas relacionamentos quebradiços. Temos medicamentos, mas uma epidemia de suicídios. Temos acesso à informação, mas não à sabedoria.

Um mundo sem Deus tornou-se um mundo sem centro, onde tudo é objeto de consumo — inclusive o próprio ser humano. O homem moderno, que outrora quis ser como Deus, agora já nem sabe se é homem. A crise antropológica, refletida na cultura, na educação e até na religião, é o espelho do abismo interior de um ser que perdeu o contato com o Sagrado.

Apesar da secularização, ou talvez por causa dela, cresce silenciosamente uma nostalgia do sagrado . Muitos procuram espiritualidade fora das religiões tradicionais; outros retornam ao silêncio da oração, ao estudo das Escrituras, ao fascínio pelos ícones e ritos antigos.

Essa busca, ainda que confusa, é um grito por sentido. O ser humano não consegue viver num mundo fechado em si mesmo. Ele tem sede do Infinito. Como Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração enquanto não relacionado em Ti.”

A morte de Deus, portanto, não é definitiva. O túmulo está vazio, mas não por abandono: está vazio porque a Ressurreição venceu. A fé cristã proclama que Deus não está morto, e que é precisamente o retorno a Ele que pode restaurar o homem.

Em tempos de hiperexposição, a alma humana clama por mistério. O mistério não é o irracional, mas aquilo que não se esgota em fórmulas. O sagrado é um convite à reverência, à escuta, à entrega. O homem não pode se salvar sozinho. Ele precisa ser reencontrado por Aquele que o criou.

Nesse sentido, a tradição — especialmente nas suas formas orientais e místicas — oferece uma via de reconciliação. Liturgia, jejum, contemplação, silêncio, comunhão: práticas que reconduzem o homem ao seu eixo interior, restituindo-lhe dignidade, vocação e sentido.

A busca pelo sagrado é, na verdade, a busca de si mesmo. Mas de um “si” que só se compreende à luz do Outro, do Totalmente Outro, do Deus vivo e verdadeiro.

A crise atual não é apenas social ou psicológica — é, sobretudo, espiritual . E por isso mesmo, ela exige uma resposta de ordem espiritual. Redescobrir Deus não é um luxo, é uma urgência. A fé não é fuga da realidade, mas reencontro com a realidade mais profunda.

Não se trata de um retorno às fórmulas passadas, mas de um novo mergulho na Tradição viva. A resposta ao vazio contemporâneo não virá do consumo, da ideologia ou da tecnologia, mas da abertura à transcendência. Somente Deus pode preencher o abismo deixado por Sua suposta morte.

E, como paradoxalmente nos mostra a Cruz, a morte de Deus foi, na verdade, o maior ato de amor... para que o homem não morra.

O grito “Deus está morto” foi, talvez, o diagnóstico mais honesto da modernidade. Mas não é a última palavra. Deus não morre. O que morre é o homem que se afastou Dele. A boa notícia, porém, é que o retorno é possível. No fundo de cada coração humano, há uma chama que nunca se apaga. É nela que, mesmo em meio ao caos, ainda se pode ouvir a voz suave do Sagrado dizendo: “Não temas, Eu estou contigo.”


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Autenticidade ou Construção? A Batalha Silenciosa do Ser no Século XXI

 


Autenticidade ou Construção? A Batalha Silenciosa do Ser no Século XXI

Vivemos em uma época marcada por um paradoxo inquietante: jamais se falou tanto em ser verdadeiro , em buscar a si mesmo , em expressar o que se é , e ao mesmo tempo, jamais estivemos tão imersos em processos de autoconstrução artificial, moldados por filtros, algoritmos e demandas sociais voláteis. Nos limiares do século XXI, o ser humano se vê enredado numa batalha silenciosa entre dificuldades e construção de si . Mas o que essas palavras realmente significam? E por que essa tensão tem se tornado tão central para a experiência humana contemporânea?

Desde Rousseau, passando por Kierkegaard e chegando aos existencialistas do século XX, a ideia de transmissão tornou-se uma espécie de ideal moral. Ser autêntico conseguiu viver de acordo com o próprio interior, com os ditames da consciência, com uma fidelidade ao “eu profundo”. Era uma resistência contra o conformismo, contra o rebanho, contra o exterior que nos coage.

Contudo, as circunstâncias contemporâneas parecem ter sido diluídas num narcisismo performático. O "seja você mesmo" virou slogan publicitário. Um produto inovador virou de mercado. A expressão de si se tornou dependente da aprovação digital, dos likes e compartilhamentos. Assim, o que antes era um valor ético existencial tornou-se mais uma máscara entre outras.

Por outro lado, muitos pensadores contemporâneos, como Judith Butler ou Zygmunt Bauman, propuseram que o “eu” não é algo fixo, mas sim uma construção contínua. O sujeito seria resultado de processos sociais, históricos, linguísticos. Em vez de um “ser”, temos um “tornar-se”. Isso pode parecer libertador: podemos nos reinventar, romper com passados ​​opressivos, experimentar novas formas de vida. Mas também esconde um risco: a dissolução de qualquer essência, de qualquer centro ontológico do ser.

Se tudo é construção, o que resta como fundamento? Se o eu é apenas performance, o que sustenta a verdade interior? Seria o sujeito apenas uma miragem produzida pela linguagem e pelas estruturas de poder?

Neste cenário, emerge uma verdadeira batalha: não nas redes sociais, não nos discursos ideológicos, mas não mais íntimos do ser. O homem moderno oscila entre o desejo de ser fiel a si mesmo e a tentativa de se reinventar indefinidamente. Entre o silêncio interior da escuta de si e o ruído incessante das identidades disponíveis para consumo. Entre a liberdade da conforto e o conforto da construção adaptável.

É uma batalha silenciosa porque raramente é nomeada. Ela se traveste de escolhas banais, de estilos de vida, de decisões profissionais, de decisões sexuais, políticas, espirituais. Mas por trás de tudo, está sempre a mesma pergunta: quem sou eu? Ou melhor: há um “eu” para ser descoberto, ou apenas um vazio para ser preenchido como o que me convém?

Como cristão e pensador tomista, acredito que há sim uma natureza humana, uma estrutura ontológica que antecede nossas escolhas. A verdade não é inventar-se do nada, mas corresponda, com liberdade, à verdade do próprio ser. Não é expressão de caprichos, mas resposta a um chamado.

É preciso resgatar o sentido contemplativo da vida, o silêncio interior, a escuta profunda. É preciso redescobrir a vocação — termo que vem de vocare , “chamar” — porque só é autêntico aquele que responde a um chamado que o transcende. O eu não se cria do nada: ele se recebe, se autoriza, se oferece.

Autenticidade e construção não precisam ser antagônicas, já que a construção seja detalhada como um desdobramento fiel do que se é, e não como uma negação do ser. Somos chamados a construir nossa vida, sim — mas como quem esculpe uma imagem que já estava ali, oculta no mármore.

No século XXI, a batalha silenciosa do ser não se vence com slogans, nem com performances. Vence-se com coragem metafísica, com humildade espiritual, com a disposição de olhar para dentro e perguntar com sinceridade: “Quem sou eu aos olhos de Deus?” E então, construir-se em fidelidade a essa resposta — única, profunda e eterna.


domingo, 18 de maio de 2025

O Eu Fragmentado: Vivendo entre Personas Digitais e Silêncios Interiores


 O Eu Fragmentado: Vivendo entre Personas Digitais e Silêncios Interiores

Vivemos em uma era profundamente marcada pelo ruído e pela dispersão. Como capelão, psicoterapeuta e estudante da filosofia tomista, percebo com frequência o sofrimento silencioso daqueles que, imersos na lógica das redes sociais e da critério contemporâneo, já não conseguem escutar sua própria alma.

Esse artigo nasce de uma inquietação comum a muitos: estamos nos perdendo de nós mesmos enquanto tentamos nos mostrar ao mundo? Inspirado pela tradição dos santos padres do Oriente, pelos ensinamentos de São Tomás de Aquino e pela escuta atenta da dor humana no consultório, convido você a refletir sobre a fragmentação do eu — suas causas, sintomas e possíveis caminhos de reintegração.

O conceito de persona , tal como formulado por Jung, ajuda-nos a entender a natureza das máscaras sociais. No fundo, todos usamos papéis — como filhos, esposos, profissionais, religiosos. Mas quando essas máscaras se tornam nossa única referência, perdemos a interioridade. Passamos a viver fora de nós mesmos, seduzidos pela imagem idealizada que projetamos ao mundo.

Nas redes sociais, essa fragmentação é quase inevitável. Tornamos-nos várias versões de um mesmo eu, cada uma ajustada ao público-alvo. Publicamos sorrisos, conquistas e opiniões cuidadosamente escolhidas, mas o que fazemos com as partes que não cabem nesses moldes? Onde relatam as dores não ditas, os pecados ocultos, os desejos mais profundos e as perguntas existenciais?

A resposta, muitas vezes, é vazia.

O silêncio, para a alma contemporânea, é mais assustador do que o barulho. Isso porque no silêncio ouvimos o que as distrações calam: o eco do que fomos, o peso do que não somos mais e a sede do que deveríamos ser.

A tradição hesicasta, por exemplo, insiste que a hesíquia (quietude) não é mera ausência de palavras, mas presença absoluta do coração diante de Deus. São Gregório Palamás ensina que o silêncio interior é o prelúdio da luz divina. O tomismo também nos aponta esse caminho: a intelecção verdadeira exige recolhimento, pois o conhecimento parte da interioridade ordenada — e não da multiplicidade dispersa.

Silenciar-se, portanto, é tornar-se novamente capaz de verdade, de presença, de amor real.

Somos, como disse Guy Debord, uma “sociedade do espetáculo”. A vida tornou-se performance e o sujeito, seu próprio produto. Como terapeuta, noto cada vez mais jovens ansiosos, pais esgotados, religiosos desiludidos — não por falta de sentido, mas por excesso de sentidos artificiais.

A alma humana, segundo a filosofia clássica, deseja o bem, o belo e a verdade. Mas esses transcendentais não se alcançam pela velocidade nem pela comparação. É preciso tempo, maturidade, solidão. Quando não há espaço interior, não há moralidade autêntica nem espiritualidade profunda. Tudo vira estética.

Como recomeçar? Antes de tudo, confirmando a fragmentação. Depois, permitindo-se a humildade de ser um: ser o mesmo diante de Deus, da esposa, do filho, do superior, do amigo. Isso exige conversão, constância, e um esforço ascético real. Exige também discernimento: saber o que devo calar, com quem posso me revelar, o que é meu e o que foi imposto pelas situações.

A prática do exame de consciência, do sacramento da confissão, da oração silenciosa, da leitura dos padres e dos bons mestres é essencial. A psicoterapia, quando iluminada por uma antropologia correta — como a tomista — também pode ser instrumento de reintegração, especialmente quando ajuda o sujeito a sair do narcisismo e reencontrar o eixo da vida: a relação com Deus e o serviço ao próximo.

O eu fragmentado de hoje é, em parte, uma resposta defensiva à cultura de exposição e hiperconexão. Mas não precisa ser nosso destino. Podemos, sim, recuperar a integridade do ser — não fugindo do mundo digital, mas colocando-o em seu devido lugar. A alma humana não foi feita para viver em vitrine, mas em profundidade.

Silêncio, verdade presença e são os remédios mais urgentes para uma geração exausta de representar. O silêncio não é fuga, mas retorna. A verdade não é julgamento, mas libertação. A presença não é performance, mas entrega.

Talvez, neste exato momento, o maior ato de resistência seja simplesmente fechar os olhos, silenciar o celular, respirar fundo e perguntar-se com sinceridade: Quem sou eu quando ninguém está olhando? A resposta, por mais dolorosa que aparece no início, pode ser o primeiro passo rumo à cura — e ao reencontro com o rosto que Deus sonhou para nós.

Que o Senhor nos conceda a graça de vivermos com integridade, no silêncio e na verdade que brotam do Seu Coração. Um abençoado domingo para você e sua família, repleto de paz e da luz de Deus!

sábado, 17 de maio de 2025

A Importância de Conhecer e Estudar os Santos Padres

 


A Importância de Conhecer e Estudar os Santos Padres.

Desde os primeiros séculos da Igreja, a fé cristã nunca foi um amontoado de ideias soltas ou fruto de especulações humanas, mas a viva transmissão de uma Verdade recebida, vivida e ensinada pelos Apóstolos e pelos Santos Padres. Conhecer e estudar os Santos Padres é, portanto, uma exigência de fidelidade à própria fé apostólica. Eles não são apenas figuras do passado, mas verdadeiros pilares que sustentam a ortodoxia, testemunhas vivas da Tradição e espelhos de santidade encarnada. Ignorar os Padres é como cortar a árvore pela raiz, esperando que ela floresça; é perder a memória da própria identidade espiritual e cair no perigo de deformar a fé recebida.

Na tradição oriental, os Santos Padres são vistos não apenas como doutores, mas como homens transfigurados pela luz de Cristo, que ensinaram a Igreja não apenas com palavras, mas com a vida. São Efrém da Síria, por exemplo, nos ensina que “a fé é mais elevada que os céus e mais profunda que os abismos”, revelando o mistério de Deus com uma poesia luminosa que tocava o coração dos fiéis. São Gregório de Narek, mestre armênio, orava dizendo: “Na minha dor, encontrei-te mais próximo que minha própria alma.” São Basílio, São Gregório de Nazianzo, São João Crisóstomo, São Isaac, o Sírio, todos eles falaram com clareza e beleza sobre os dogmas, os sacramentos, a vida ascética, a divinização do homem, e o mistério da Igreja como Corpo vivo do Senhor.

O afastamento moderno da leitura e veneração dos Padres é um dos grandes males que atingem as comunidades cristãs, especialmente quando se buscam respostas novas desconectadas da experiência da fé vivida. Muitos cristãos hoje já não sabem de onde vieram, não reconhecem a profundidade dos escritos antigos, e, como consequência, abraçam ideias confusas, espiritualidades genéricas e até heresias travestidas de progresso. Uma fé sem raízes é uma fé que se torna facilmente presa do mundo. Como ensinava São João Damasceno, “guardemos os ensinamentos dos Padres como pérolas preciosas”, pois neles brilha a mesma luz que iluminou os Apóstolos.

A tradição siríaca tem especial veneração por essa continuidade viva. Os hinos, as liturgias e as preces da Igreja respiram o espírito dos Padres, e a doutrina que neles encontramos não é fria, mas calorosa, carregada de imagens, de contemplação, de amor pela Encarnação. São Isaac, o Sírio, dizia que “aquele que conhece verdadeiramente a si mesmo é maior que aquele que ressuscita os mortos”. Não há ruptura entre a mística, a doutrina e a prática nos Padres do Oriente; tudo converge para o conhecimento de Deus através do arrependimento, da humildade, da oração e da caridade.

Esquecer os Padres é um sinal de ingratidão e de fraqueza espiritual. Honrar os pais na fé é mandamento de Deus, assim como honramos nossos pais segundo a carne. A Igreja é Mãe, mas também tem pais espirituais. Esses pais foram os primeiros a viver a fé em meio às perseguições, a definir os dogmas contra as heresias, a organizar a vida eclesial e a dar testemunho com o próprio sangue. Se eles foram fiéis até o fim, como nós poderíamos ser negligentes em conhecê-los? Como poderíamos pretender ensinar, viver ou até reformar o que não compreendemos em sua origem?

O perigo do esquecimento é o surgimento de erros doutrinários. Toda vez que a Igreja se afastou do espírito dos Padres, ela entrou em confusão. Muitas divisões, abusos litúrgicos, moralismos e desvios teológicos surgiram exatamente onde se perdeu o contato com os santos do deserto, com os mártires, com os teólogos da oração. A Igreja Oriental sempre soube preservar esse tesouro com reverência: através da iconografia, dos ofícios, da memória litúrgica, da catequese e da espiritualidade doméstica. Ainda hoje, muitos de nossos nomes de batismo vêm desses homens e mulheres de fé, e suas festas continuam sendo celebradas como parte da vida viva da Igreja.

Voltar aos Padres não é nostalgia, é necessidade. Eles nos mostram Cristo com profundidade e beleza. Eles nos ajudam a rezar, a pensar, a compreender o Evangelho com os olhos da Igreja indivisa. Eles são alimento sólido para um tempo de confusão. Por isso, é urgente uma restauração do espírito patrístico em nossas comunidades, nos seminários, nos mosteiros, nas famílias e nas pregações. Que cada fiel oriental reencontre nos Padres o espelho de sua vocação, a memória de sua fé e a força de sua identidade.

Somente assim poderemos resistir às tempestades doutrinais do nosso tempo, permanecer fiéis ao Espírito Santo que fala através da Tradição, e reconhecer na voz dos Padres a voz da própria Igreja, a Esposa de Cristo, que é una, santa, católica e apostólica.


sexta-feira, 16 de maio de 2025

O Novus Ordo Missae à Luz da Tradição: Uma Análise Crítica e Teológica.

 

O Novus Ordo Missae à Luz da Tradição: Uma Análise Crítica e Teológica.

“Lex orandi, lex credendi” – A lei da oração é a lei da fé.
(Princípio da Tradição Litúrgica Cristã)

Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Sagrada Liturgia foi considerada não apenas o meio ordinário pelo qual os fiéis oferecem culto a Deus, mas também o reflexo visível da fé invisível da Igreja. A liturgia é o lugar da teologia viva, o lugar onde se expressa de modo mais puro e direto o conteúdo da fé católica. É por isso que, desde o axioma patrístico “Lex orandi, lex credendi” – a lei da oração é a lei da fé –, os santos padres sempre ensinaram que qualquer alteração substancial na liturgia certamente repercutirá na doutrina e, por consequência, na vida espiritual do povo cristão.

A Missa, tal como celebrada segundo o rito romano tradicional (Missale Romanum de São Pio V), codificada após o Concílio de Trento mas com raízes apostólicas, constitui a expressão mais refinada e segura da fé católica. Nele encontramos uma estrutura coerente, desenvolvida organicamente ao longo dos séculos, protegida pela autoridade da Igreja contra inovações doutrinais, heresias e abusos devocionais. Essa liturgia foi o alimento espiritual dos maiores santos da Igreja latina – São Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, São Pio de Pietrelcina – e foi, por séculos, uma norma cultural universal do Ocidente.

No entanto, após o Concílio Vaticano II, surgiu um novo rito da Missa, promulgado em 1969 por Paulo VI, resultado de uma reforma litúrgica sem precedente, dirigida por uma comissão composta por liturgistas modernistas e assistida por observadores protestantes. Esta nova liturgia, conhecida como Novus Ordo Missae , apresenta uma ruptura tão evidente com a Tradição da Igreja que chegou a ser objeto de advertência de dois cardeais, Ottaviani e Bacci, em um documento entregue ao Papa Paulo VI, intitulado “Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae”. Nele afirma com clareza que a nova missa representa, "em conjunto como nos detalhes, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como formulada na Sessão XXII do Concílio de Trento".

Um dos pontos mais graves apontados por esses cardeais é a ambiguidade da nova missa em relação ao caráter sacrificial da Eucaristia. Onde a Missa tradicional exalta, com precisão teológica e beleza litúrgica, o sacrifício de Cristo no Calvário tornado presente sobre o altar, a nova liturgia apresenta uma terminologia ambígua, voltada ao aspecto de "ceia" ou "banquete fraterno", obscurecendo o sacrifício propiciatório oferecido a Deus pelos pecados. No rito tradicional, ao oferecer a Hóstia pura, santa e imaculada, o sacerdote suplica a Deus que aceitou o sacrifício “pro nostra et totius mundi salute”. Já o novo rito substitui essas expressões por fórmulas inspiradas no judaísmo pós-bíblico e em tradições orientais de natureza não-sacrificial, como no ofertório onde se diz: “Bendito sois vós, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa honra...”. Nenhuma menção direta ao sacrifício de Cristo. Esse obscurecimento, ainda que não negue formalmente o sacrifício, torna sua percepção difícil ao campo comum, favorecendo interpretações protestantes e racionalistas.

É verdade que muitos alegam que “é possível celebrar o Novus Ordo com dignidade”, e que sua validade não está em questão. Contudo, tal argumento é superficial e ignora o princípio litúrgico fundamental de que uma liturgia não é apenas válida, mas deve ser o mais adequado possível para expressar e transmitir a fé integral da Igreja. Dizer que o novo rito pode ser celebrado com reverência é como dizer que se pode colocar a água do mar num balde: o balde comporta água, sim, mas jamais o oceano. Da mesma forma, o Novus Ordo, mesmo cercado de cuidados externos (uso do latim, canto gregoriano, ad orientem), continua limitado por sua estrutura interna deformada. Um rito que nasce da ruptura, moldado por critérios ecumênicos e horizontais, tende naturalmente à desordem e à diluição doutrinal.

Outra consequência desastrosa foi a perda do senso do sagrado. O silêncio litúrgico isolado, o altar foi substituído por uma mesa, e o sacerdote, ao se voltar para o povo, transforma-se em animador da assembleia. Músicas profanas, danças, palmas e improvisações passaram a ser toleradas ou incentivadas, mesmo que não sejam explicitamente previstas no missal. A figura do sacerdote se dilui, os leigos assumem funções antes restritas ao ministério ordenado, e a presença real de Cristo é frequentemente ignorada ou tratada com descaso. O resultado é um povo que já não distingue entre o sacrifício do altar e uma reunião fraterna: uma missa que se tornou teatro, em vez de Calvário.

Outro erro comum é considerar a reforma litúrgica como um "desenvolvimento orgânico", como se houvesse continuidade entre o missal de São Pio V e o de Paulo VI. Nada mais falso. O primeiro é fruto de séculos de depuração, sacralização e amadurecimento. O segundo produto foi de uma comissão tecnocrática, que em poucos anos alterou o que a Igreja havia construído ao longo de milênios. Se fosse apenas uma simplificação de ritos secundários, não haveria escândalo. Mas o que ocorreu foi uma alteração profunda na estrutura teológica da celebração: mudou-se a oração e, como consequência, alterou-se a fé.

A Tradição da Igreja nunca permitiu reformas tão radicais. São Pio V, ao codificar o Missal Romano em 1570, não criou nada de novo, mas apenas uniformizou o que já era venerável por mais de mil anos. E ainda garantiu, em sua bula Quo Primum Tempore , que ninguém jamais poderia ser obrigado a abandonar aquele rito. Suas palavras são claras e vigorosas: “Estatuímos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que absolutamente ninguém seja obrigado a modificar este Missal”.

Com efeito, ao analisarmos o panorama geral das mudanças ocorridas após o Concílio Vaticano II, torna-se evidente que a reforma do rito da Missa não foi um evento isolado, mas parte de uma transformação sistemática de todos os elementos visíveis e estruturais da vida da Igreja. A modificação radical da Sagrada Liturgia – especialmente da Missa, coração do culto católico – foi o primeiro sinal de uma tentativa de construção de uma nova igreja, com novos princípios, nova linguagem, nova disciplina e, em muitos casos, até a mesma nova teologia. A substituição da Missa tradicional pelo Novus Ordo foi acompanhada por reformas igualmente profundas no Breviário (a Liturgia das Horas), no Código de Direito Canônico (1983), nos ritos dos sacramentos (especial o da Ordem e o da Confirmação), na formação dos padres, na arquitetura dos templos, nas vestes litúrgicas e até mesmo no calendário litúrgico. Nada foi deixado intacto.

Como já anunciou o teólogo dominicano Michel-Louis Guérard des Lauriers, tal conjunto de reformas aponta não para um simples aprimoramento pastoral, mas para um projeto mais profundo de ruptura com a Tradição. O teólogo Romano Amerio, por sua vez, em sua obra monumental Iota Unum , afirma que “não se trata apenas de mudança, mas da substituição de uma cultura católica por uma mentalidade nova, de origem humanista e moderna”. Tudo isso reflete não apenas descontinuidade, mas a implantação progressiva de uma nova eclesiologia, que coloca em segundo plano os pilares tradicionais da fé para dar lugar a uma versão horizontalizada, sentimental e relativista do catolicismo. São Pio X já alertou: “o inimigo está dentro da Igreja”. E de fato, nunca as palavras do Papa Leão XIII pareciam tão atuais: “Quando se tenta destruir o culto da Igreja, tenta-se minar a própria fé.”

Por fim, é necessário reafirmar que a preservação do rito tradicional da Missa não é fruto de saudosismo, rebeldia ou nostalgia, mas sim um ato de fidelidade àquilo que sempre foi professado, celebrado e transmitido pela Igreja ao longo dos séculos. Como ensinou São Pio X, na sua célebre encíclica Tra le Sollecitudini (1903), ao tratar da música sacra, mas com aplicação direta à liturgia como um todo: “A Igreja tem o dever de conservar com zelo o depósito da fé e da tradição sagrada, repelindo toda inovação temerária que possa maculá-lo ou obscurecê-lo.” Defensor o rito de sempre é, pois, defensor a fé de sempre. Não se trata de um gosto pessoal ou de uma simples preferência estética, mas de uma necessidade doutrinal urgente, sobretudo em tempos de profunda crise e confusão, quando tantos elementos da fé católica são relativizados ou excluídos sob o pretexto de adaptação ao mundo moderno.

Diante de tamanha desordem e confusão, não nos resta senão clamar aos Céus com humildade e confiança. Senhor Deus Todo-Poderoso, Pastor Eterno de nossas almas, por intercessão da Santíssima Virgem Maria, Mãe da Igreja, e de todos os santos que vos serviram com fidelidade, especialmente os mártires da Sagrada Liturgia, concedei-nos a graça de ver restaurada em vossa Igreja a pureza do culto, a integridade da doutrina e a dignidade dos sacramentos.

Dai-nos sacerdotes santos, que celebrem os santos mistérios com temor e tremor, segundo os ritos que santificaram gerações e formaram legiões de santos. Dai-nos fé humildes e sedentos da vossa verdade, não das novidades dos homens. Fazei com que retornaremos, como filhos pródigos, à casa do Pai, onde o sacrifício do Calvário é renovado no altar com reverência, onde o Santíssimo Sacramento é adorado em espírito e verdade, onde os corações são inflamados pelo mistério da Redenção.

Ó Senhor, que não permites que as portas do inferno prevaleçam contra a tua Igreja, olhai com misericórdia para os rebanhos dispersos e confusos. Reacendei em nós o amor pela Santa Missa tradicional, pelos sacramentos como os recebidos dos Apóstolos, pela fé como foi transmitida sem ruptura. E que, um dia, esperamos todos nos reunir ao redor do Cordeiro imolado, no banquete eterno, onde toda lágrima será enxugada e toda liturgia será perfeita, no Céu.

Domine, ut vídeo! – Senhor, que eu veja!

Domine, ut redeat! – Senhor, que ela volte!

Domine, ut renovetur Ecclesia Tua! – Senhor, que se renove a Tua Igreja!


Poema — Ardor do Carmelo

Poema — Ardor do Carmelo Nas montanhas altas e frias do tempo, Silêncio e solidão teciam o alento. Ali viviam, em paz e oração, Eremitas...