O Novus Ordo Missae à Luz da Tradição: Uma Análise Crítica e Teológica.
“Lex orandi, lex credendi” – A lei da oração é a lei da fé.
(Princípio da Tradição Litúrgica Cristã)
Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Sagrada Liturgia foi considerada não apenas o meio ordinário pelo qual os fiéis oferecem culto a Deus, mas também o reflexo visível da fé invisível da Igreja. A liturgia é o lugar da teologia viva, o lugar onde se expressa de modo mais puro e direto o conteúdo da fé católica. É por isso que, desde o axioma patrístico “Lex orandi, lex credendi” – a lei da oração é a lei da fé –, os santos padres sempre ensinaram que qualquer alteração substancial na liturgia certamente repercutirá na doutrina e, por consequência, na vida espiritual do povo cristão.
A Missa, tal como celebrada segundo o rito romano tradicional (Missale Romanum de São Pio V), codificada após o Concílio de Trento mas com raízes apostólicas, constitui a expressão mais refinada e segura da fé católica. Nele encontramos uma estrutura coerente, desenvolvida organicamente ao longo dos séculos, protegida pela autoridade da Igreja contra inovações doutrinais, heresias e abusos devocionais. Essa liturgia foi o alimento espiritual dos maiores santos da Igreja latina – São Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, São Pio de Pietrelcina – e foi, por séculos, uma norma cultural universal do Ocidente.
No entanto, após o Concílio Vaticano II, surgiu um novo rito da Missa, promulgado em 1969 por Paulo VI, resultado de uma reforma litúrgica sem precedente, dirigida por uma comissão composta por liturgistas modernistas e assistida por observadores protestantes. Esta nova liturgia, conhecida como Novus Ordo Missae , apresenta uma ruptura tão evidente com a Tradição da Igreja que chegou a ser objeto de advertência de dois cardeais, Ottaviani e Bacci, em um documento entregue ao Papa Paulo VI, intitulado “Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae”. Nele afirma com clareza que a nova missa representa, "em conjunto como nos detalhes, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como formulada na Sessão XXII do Concílio de Trento".
Um dos pontos mais graves apontados por esses cardeais é a ambiguidade da nova missa em relação ao caráter sacrificial da Eucaristia. Onde a Missa tradicional exalta, com precisão teológica e beleza litúrgica, o sacrifício de Cristo no Calvário tornado presente sobre o altar, a nova liturgia apresenta uma terminologia ambígua, voltada ao aspecto de "ceia" ou "banquete fraterno", obscurecendo o sacrifício propiciatório oferecido a Deus pelos pecados. No rito tradicional, ao oferecer a Hóstia pura, santa e imaculada, o sacerdote suplica a Deus que aceitou o sacrifício “pro nostra et totius mundi salute”. Já o novo rito substitui essas expressões por fórmulas inspiradas no judaísmo pós-bíblico e em tradições orientais de natureza não-sacrificial, como no ofertório onde se diz: “Bendito sois vós, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa honra...”. Nenhuma menção direta ao sacrifício de Cristo. Esse obscurecimento, ainda que não negue formalmente o sacrifício, torna sua percepção difícil ao campo comum, favorecendo interpretações protestantes e racionalistas.
É verdade que muitos alegam que “é possível celebrar o Novus Ordo com dignidade”, e que sua validade não está em questão. Contudo, tal argumento é superficial e ignora o princípio litúrgico fundamental de que uma liturgia não é apenas válida, mas deve ser o mais adequado possível para expressar e transmitir a fé integral da Igreja. Dizer que o novo rito pode ser celebrado com reverência é como dizer que se pode colocar a água do mar num balde: o balde comporta água, sim, mas jamais o oceano. Da mesma forma, o Novus Ordo, mesmo cercado de cuidados externos (uso do latim, canto gregoriano, ad orientem), continua limitado por sua estrutura interna deformada. Um rito que nasce da ruptura, moldado por critérios ecumênicos e horizontais, tende naturalmente à desordem e à diluição doutrinal.
Outra consequência desastrosa foi a perda do senso do sagrado. O silêncio litúrgico isolado, o altar foi substituído por uma mesa, e o sacerdote, ao se voltar para o povo, transforma-se em animador da assembleia. Músicas profanas, danças, palmas e improvisações passaram a ser toleradas ou incentivadas, mesmo que não sejam explicitamente previstas no missal. A figura do sacerdote se dilui, os leigos assumem funções antes restritas ao ministério ordenado, e a presença real de Cristo é frequentemente ignorada ou tratada com descaso. O resultado é um povo que já não distingue entre o sacrifício do altar e uma reunião fraterna: uma missa que se tornou teatro, em vez de Calvário.
Outro erro comum é considerar a reforma litúrgica como um "desenvolvimento orgânico", como se houvesse continuidade entre o missal de São Pio V e o de Paulo VI. Nada mais falso. O primeiro é fruto de séculos de depuração, sacralização e amadurecimento. O segundo produto foi de uma comissão tecnocrática, que em poucos anos alterou o que a Igreja havia construído ao longo de milênios. Se fosse apenas uma simplificação de ritos secundários, não haveria escândalo. Mas o que ocorreu foi uma alteração profunda na estrutura teológica da celebração: mudou-se a oração e, como consequência, alterou-se a fé.
A Tradição da Igreja nunca permitiu reformas tão radicais. São Pio V, ao codificar o Missal Romano em 1570, não criou nada de novo, mas apenas uniformizou o que já era venerável por mais de mil anos. E ainda garantiu, em sua bula Quo Primum Tempore , que ninguém jamais poderia ser obrigado a abandonar aquele rito. Suas palavras são claras e vigorosas: “Estatuímos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que absolutamente ninguém seja obrigado a modificar este Missal”.
Com efeito, ao analisarmos o panorama geral das mudanças ocorridas após o Concílio Vaticano II, torna-se evidente que a reforma do rito da Missa não foi um evento isolado, mas parte de uma transformação sistemática de todos os elementos visíveis e estruturais da vida da Igreja. A modificação radical da Sagrada Liturgia – especialmente da Missa, coração do culto católico – foi o primeiro sinal de uma tentativa de construção de uma nova igreja, com novos princípios, nova linguagem, nova disciplina e, em muitos casos, até a mesma nova teologia. A substituição da Missa tradicional pelo Novus Ordo foi acompanhada por reformas igualmente profundas no Breviário (a Liturgia das Horas), no Código de Direito Canônico (1983), nos ritos dos sacramentos (especial o da Ordem e o da Confirmação), na formação dos padres, na arquitetura dos templos, nas vestes litúrgicas e até mesmo no calendário litúrgico. Nada foi deixado intacto.
Como já anunciou o teólogo dominicano Michel-Louis Guérard des Lauriers, tal conjunto de reformas aponta não para um simples aprimoramento pastoral, mas para um projeto mais profundo de ruptura com a Tradição. O teólogo Romano Amerio, por sua vez, em sua obra monumental Iota Unum , afirma que “não se trata apenas de mudança, mas da substituição de uma cultura católica por uma mentalidade nova, de origem humanista e moderna”. Tudo isso reflete não apenas descontinuidade, mas a implantação progressiva de uma nova eclesiologia, que coloca em segundo plano os pilares tradicionais da fé para dar lugar a uma versão horizontalizada, sentimental e relativista do catolicismo. São Pio X já alertou: “o inimigo está dentro da Igreja”. E de fato, nunca as palavras do Papa Leão XIII pareciam tão atuais: “Quando se tenta destruir o culto da Igreja, tenta-se minar a própria fé.”
Por fim, é necessário reafirmar que a preservação do rito tradicional da Missa não é fruto de saudosismo, rebeldia ou nostalgia, mas sim um ato de fidelidade àquilo que sempre foi professado, celebrado e transmitido pela Igreja ao longo dos séculos. Como ensinou São Pio X, na sua célebre encíclica Tra le Sollecitudini (1903), ao tratar da música sacra, mas com aplicação direta à liturgia como um todo: “A Igreja tem o dever de conservar com zelo o depósito da fé e da tradição sagrada, repelindo toda inovação temerária que possa maculá-lo ou obscurecê-lo.” Defensor o rito de sempre é, pois, defensor a fé de sempre. Não se trata de um gosto pessoal ou de uma simples preferência estética, mas de uma necessidade doutrinal urgente, sobretudo em tempos de profunda crise e confusão, quando tantos elementos da fé católica são relativizados ou excluídos sob o pretexto de adaptação ao mundo moderno.
Diante de tamanha desordem e confusão, não nos resta senão clamar aos Céus com humildade e confiança. Senhor Deus Todo-Poderoso, Pastor Eterno de nossas almas, por intercessão da Santíssima Virgem Maria, Mãe da Igreja, e de todos os santos que vos serviram com fidelidade, especialmente os mártires da Sagrada Liturgia, concedei-nos a graça de ver restaurada em vossa Igreja a pureza do culto, a integridade da doutrina e a dignidade dos sacramentos.
Dai-nos sacerdotes santos, que celebrem os santos mistérios com temor e tremor, segundo os ritos que santificaram gerações e formaram legiões de santos. Dai-nos fé humildes e sedentos da vossa verdade, não das novidades dos homens. Fazei com que retornaremos, como filhos pródigos, à casa do Pai, onde o sacrifício do Calvário é renovado no altar com reverência, onde o Santíssimo Sacramento é adorado em espírito e verdade, onde os corações são inflamados pelo mistério da Redenção.
Ó Senhor, que não permites que as portas do inferno prevaleçam contra a tua Igreja, olhai com misericórdia para os rebanhos dispersos e confusos. Reacendei em nós o amor pela Santa Missa tradicional, pelos sacramentos como os recebidos dos Apóstolos, pela fé como foi transmitida sem ruptura. E que, um dia, esperamos todos nos reunir ao redor do Cordeiro imolado, no banquete eterno, onde toda lágrima será enxugada e toda liturgia será perfeita, no Céu.
Domine, ut vídeo! – Senhor, que eu veja!
Domine, ut redeat! – Senhor, que ela volte!
Domine, ut renovetur Ecclesia Tua! – Senhor, que se renove a Tua Igreja!
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