Vivemos em uma época marcada por um paradoxo inquietante: jamais se falou tanto em ser verdadeiro , em buscar a si mesmo , em expressar o que se é , e ao mesmo tempo, jamais estivemos tão imersos em processos de autoconstrução artificial, moldados por filtros, algoritmos e demandas sociais voláteis. Nos limiares do século XXI, o ser humano se vê enredado numa batalha silenciosa entre dificuldades e construção de si . Mas o que essas palavras realmente significam? E por que essa tensão tem se tornado tão central para a experiência humana contemporânea?
Desde Rousseau, passando por Kierkegaard e chegando aos existencialistas do século XX, a ideia de transmissão tornou-se uma espécie de ideal moral. Ser autêntico conseguiu viver de acordo com o próprio interior, com os ditames da consciência, com uma fidelidade ao “eu profundo”. Era uma resistência contra o conformismo, contra o rebanho, contra o exterior que nos coage.
Contudo, as circunstâncias contemporâneas parecem ter sido diluídas num narcisismo performático. O "seja você mesmo" virou slogan publicitário. Um produto inovador virou de mercado. A expressão de si se tornou dependente da aprovação digital, dos likes e compartilhamentos. Assim, o que antes era um valor ético existencial tornou-se mais uma máscara entre outras.
Por outro lado, muitos pensadores contemporâneos, como Judith Butler ou Zygmunt Bauman, propuseram que o “eu” não é algo fixo, mas sim uma construção contínua. O sujeito seria resultado de processos sociais, históricos, linguísticos. Em vez de um “ser”, temos um “tornar-se”. Isso pode parecer libertador: podemos nos reinventar, romper com passados opressivos, experimentar novas formas de vida. Mas também esconde um risco: a dissolução de qualquer essência, de qualquer centro ontológico do ser.
Se tudo é construção, o que resta como fundamento? Se o eu é apenas performance, o que sustenta a verdade interior? Seria o sujeito apenas uma miragem produzida pela linguagem e pelas estruturas de poder?
Neste cenário, emerge uma verdadeira batalha: não nas redes sociais, não nos discursos ideológicos, mas não mais íntimos do ser. O homem moderno oscila entre o desejo de ser fiel a si mesmo e a tentativa de se reinventar indefinidamente. Entre o silêncio interior da escuta de si e o ruído incessante das identidades disponíveis para consumo. Entre a liberdade da conforto e o conforto da construção adaptável.
É uma batalha silenciosa porque raramente é nomeada. Ela se traveste de escolhas banais, de estilos de vida, de decisões profissionais, de decisões sexuais, políticas, espirituais. Mas por trás de tudo, está sempre a mesma pergunta: quem sou eu? Ou melhor: há um “eu” para ser descoberto, ou apenas um vazio para ser preenchido como o que me convém?
Como cristão e pensador tomista, acredito que há sim uma natureza humana, uma estrutura ontológica que antecede nossas escolhas. A verdade não é inventar-se do nada, mas corresponda, com liberdade, à verdade do próprio ser. Não é expressão de caprichos, mas resposta a um chamado.
É preciso resgatar o sentido contemplativo da vida, o silêncio interior, a escuta profunda. É preciso redescobrir a vocação — termo que vem de vocare , “chamar” — porque só é autêntico aquele que responde a um chamado que o transcende. O eu não se cria do nada: ele se recebe, se autoriza, se oferece.
Autenticidade e construção não precisam ser antagônicas, já que a construção seja detalhada como um desdobramento fiel do que se é, e não como uma negação do ser. Somos chamados a construir nossa vida, sim — mas como quem esculpe uma imagem que já estava ali, oculta no mármore.
No século XXI, a batalha silenciosa do ser não se vence com slogans, nem com performances. Vence-se com coragem metafísica, com humildade espiritual, com a disposição de olhar para dentro e perguntar com sinceridade: “Quem sou eu aos olhos de Deus?” E então, construir-se em fidelidade a essa resposta — única, profunda e eterna.
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