quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Sociedade Atual e a Incapacidade de Compreender o Mito da Caverna

 


A Sociedade Atual e a Incapacidade de Compreender o Mito da Caverna

O mito da caverna, narrado por Platão, é um daqueles textos que atravessam os séculos como uma lâmina afiada. Não se trata de uma história antiga e ultrapassada; trata-se de um espelho incômodo. Nele, prisioneiros acorrentados desde o nascimento veem apenas sombras projetadas na parede da caverna e tomam essas sombras por realidade. Quando um deles se liberta e conhece o mundo verdadeiro, volta para libertar os outros — e é recebido com hostilidade, ridicularização e violência.

Parece familiar? Pois é.

Vivemos numa época saturada de informação, mas empobrecida de reflexão. Nunca tivemos tanto acesso à “luz”, e nunca estivemos tão confortáveis nas sombras. O homem contemporâneo não está preso por correntes de ferro, mas por correntes de vício, distração e conformismo. A caverna de hoje tem nome: redes sociais, polarizações vazias, narrativas fabricadas. São sombras que se movem rápido, piscam, brilham — e nos dão a falsa sensação de estarmos vendo tudo, quando na verdade vemos nada.

O problema é que a compreensão do mito exige mais que saber “resumir” a história. É preciso reconhecer-se como um dos prisioneiros — e isso fere o orgulho moderno. Admitir que tivemos boa parte da vida enganada é um golpe que poucos suportam. É mais fácil rir de quem tenta mostrar a luz do sol do que encarar a clareza que denuncia nossas ilusões.

A sociedade atual tornou-se tão alérgica à verdade quanto aos prisioneiros à luz. A verdade não é confortável, não é moldável ao gosto do consumidor. Ela exige conversão, humildade e renúncia — virtudes em extinção. Por isso, o mito da caverna é hoje limitado a uma curiosidade escolar, encaixotado na prateleira de “filosofia introdutória”, quando deveria ser um alarme espiritual, um chamado para acordar.

A maior tragédia não é estarmos na caverna. É amarmos as correntes.
O homem contemporâneo não teme a escuridão — teme a luz.

sábado, 9 de agosto de 2025

As cruzes que ninguém vê — A vida oculta de um homem casado e sacerdote

 


As cruzes que ninguém vê — A vida oculta de um homem casado e sacerdote

Há cruzes que se erguem à vista de todos: o peso de uma enfermidade, o luto recente, a pobreza gritante, a solidão confessada. Mas existem aquelas cruzes silenciosas, escondidas no coração, que poucos percebem. São as cruzes do homem que, ao mesmo tempo, é esposo, pai e sacerdote — um chamado duplo que, em vez de se dividir, multiplicar-se em  exigências, renúncias e combates internos.

No altar da igreja, ele oferece o Corpo e o Sangue de Cristo. Na mesa de casa, parte o pão do cotidiano, com contas a pagar e filhos para educar. Entre uma homilia e uma conversa à beira da cama dos filhos, entre um sacramento administrado e uma pia de pratos acumulados, ele vive um sacerdócio que não cabe apenas na sacristia.

Há dias em que o peso do colarinho clerical se mistura ao peso da aliança matrimonial, e ambos pedem fidelidade total.

O apóstolo Paulo, ao escrever a Timóteo, não excluiu a possibilidade de um presbítero ser casado; pelo contrário, exigiu que ele fosse “marido de uma só mulher” (1Tm 3,2), capaz de governar bem sua casa como sinal de que saberá cuidar da Igreja de Deus.

Há pedidos de ajuda às três da manhã. Há telefones inesperados de paroquianos em crise, que acontecem no mesmo instante em que a esposa precisa de atenção ou um filho chora. Nessas horas, não há público aplaudindo o sacrifício, não há manchete enaltecendo o gesto. Há apenas a solidão do dever, sustentada por uma oração silenciosa:

“Senhor, ajude-me a não falhar com ninguém, mesmo que eu falhe comigo.”

São João Crisóstomo, ele que era um bispo oriental profundamente consciente das critérios pastorais, escreveu:

"O sacerdote vive entre o céu e a terra. Ele fala aos homens em nome de Deus e fala a Deus em nome dos homens. Sua vida é toda doação, e por isso, necessariamente, toda cruz."

(De Sacerdotio , II, 4)

O mundo espera que o sacerdote seja sempre paciente, sempre disponível, sempre irrepreensível. A família, por sua vez, precisa que ele seja presente, sensível e firme. E ele, no íntimo, luta contra o cansaço, o desânimo e a tentativa de fazer menos do que poderia. É uma guerra espiritual constante, onde a primeira trincheira é o próprio coração.

Nas igrejas católicas orientais, desde os tempos apostólicos até hoje, muitos padres são homens casados. Não é uma concessão moderna, mas uma herança viva. São exemplos de que a fidelidade a Deus pode florescer no terreno do matrimônio e do altar, desde que a cruz seja abraçada com amor.

O Concílio de Trullo (692), reconhecido pela tradição oriental, reafirmou essa prática: o presbítero casado deve viver uma vida conjugal com pureza e governar sua casa de forma irrepreensível, lembrando sempre que sua primeira esposa espiritual é a Igreja.

Não é uma vida de perfeição exibida, mas de santidade construída no segredo. Deus vê. Deus sabe. E é Ele quem transforma a fadiga em oferta, as lágrimas em sementes, a renúncia em coroa.

Ser homem casado e sacerdote é viver entre dois amores que se completam: o amor esponsal pela esposa e filhos, e o amor esponsal pela Igreja. E é na cruz invisível do dia a dia que estes dois amores se encontram no Cristo que também amou até o fim.

São Gregório Nazianzeno descreve o ministério como um fogo que consome o sacerdote por inteiro:

"Não posso ser meio de Deus e meio do mundo. Onde Deus me colocou, devo ser todo Dele, ainda que minha carne sinta o peso e minha alma se incline ao descanso."

(Oratio 2, De fuga sua )

As cruzes que ninguém vê talvez sejam as mais pesadas, justamente porque ninguém ajuda a carregá-las… a não ser Cristo. E é no abraço dessa cruz que o homem casado e sacerdote descobre, dia após dia, que sua vida não é dividida, mas consagrada inteiramente, em todos os altares — o de pedra e o do lar.

E assim, enquanto o mundo vê apenas o homem que prega e celebra, o Céu contempla o servo que, com as mãos calejadas pelo trabalho e pelo cuidado da família, eleva também o cálice da salvação, oferecendo-se inteiro por amor. 

 

 

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Quantos de Nós Realmente Sabemos Escrever?

 



Quantos de Nós Realmente Sabemos Escrever?

Vivemos num tempo em que todos escrevem, mas poucos escrevem bem . Escrever virou hábito — e vício. Mandamos mensagens, redigimos e-mails, fazemos posts, tweets, bilhetes. Mas… quantos de nós realmente sabemos escrever?

Não me refiro à habilidade técnica de submeter e predicado. Refiro-me ao ato sagrado de pensar com palavras. Escrever é uma extensão da alma. Quem escreve bem, antes de tudo, pensa bem. E quem não sabe ordenar ideias, também não saberá ordenar as ideias na folha.

A maioria escreve como quem fala — e fala mal. Derrama palavras como água suja, sem filtro, sem forma, sem beleza. Falta estrutura, falta clareza, falta verdade .

Escrever, outrora, era um ofício. Requer tempo, silêncio e leitura. Muitos autores escreveram com pena, não só de tinta, mas do coração. Lapidavam frases como escultores antigos. Hoje, a escrita virou um produto simultaneamente: instantânea, superficial, e muitas vezes preguiçosa.

Nas escolas, já não se ensina a redigir com rigor. Os alunos mal leem — e se leem, não compreendem. Como poderia, então, escrever com sentido? Falta gramática, vocabulário, e o mais grave: falta amor pela palavra bem dita .

Quem escreve, ensina. Mesmo sem querer, mesmo sem saber. Ao publicar uma frase, estamos formando ou deformando o leitor. Estamos semeando ideias — boas ou ruíns. Por isso, escrever exige responsabilidade. Não se jogue palavras ao vento impunemente . Cada vírgula mal colocada é uma desordem no pensamento. Cada erro, um convite à confusão.

Quer saber se você realmente sabe escrever? Tente explicar algo complexo de forma simples. Tente emocionar sem ser piegas. Tente convencer sem gritar. Escreva algo que alguém possa ler em silêncio… e sair transformado.

Difícil? É claro que é. Escrever bem exige humildade. Quem acha que já sabe, já perdeu o caminho. Quem escreve bem, reescreve. Corta, ajusta, recomeça. Porque escrever é, no fundo, um caminho de conversão — da confusão à clareza, do caos à ordem, da pressa ao cuidado.

Não para enfeitar o mundo com firulas literárias. Mas para restaurar o senso, o pensamento, a verdade. Precisamos de gente que saiba dizer o certo, do jeito certo, na hora certa. Que saiba usar as palavras como se fossem preces. Ou como armas — quando necessário.

Se você quer aprender a escrever, comece lendo os mestres. Ouça o ritmo das boas frases. Fuja das modinhas e dos modismos. Acima de tudo: pense antes de escrever. Pense com calma, com seleções, com paixão pela verdade. Porque no fim, escrever é uma forma de amar.


O Patriarca de Ouro: Entre a Cruz e o Kremlin

 

 
O Patriarca de Ouro: Entre a Cruz e o Kremlin
Por Matheus Lino

Nos tempos dos Padres da Igreja, o bispo era o pobre entre os pobres, o servo dos servos, o mártir que ascendia ao trono episcopal pela via do sangue, não do prestígio. Mas hoje, entre palácios, jatinhos e relógios suíços, será que ainda resta algo daquela glória verdadeira que passa pela cruz?

Um nome salta aos olhos nesse contraste escandaloso: Patriarca Cirilo I (Kiril) , líder da Igreja Ortodoxa Russa, homem de vestes sagradas — mas esses passos parecem ecoar mais o tilintar do ouro do que o silêncio da oração.

Em 2012, uma fotografia oficial publicada no site do Patriarcado mostrou Kiril sentado, em aparente sobriedade. Nada mais, até que os internautas notaram um detalhe perturbador: o reflexo na mesa polida mostrou um relógio caríssimo no pulso do patriarca, mas o objeto havia sido apagado da imagem .

O modelo? Um Breguet de 30 mil dólares , acessório mais comum em príncipes do Golfo do que em sucessores dos Apóstolos. A edição da imagem foi confirmada. Uma justificativa? "Erro técnico." Mas o símbolo ocorre: um reflexo que diz mais do que mil palavras.

A Igreja Ortodoxa Russa, sob o comando de Kiril, tornou-se um braço ideológico do Kremlin , oferecendo sustentação religiosa ao projeto imperial de Vladimir Putin. O patriarca chegou a declarar que a guerra contra a Ucrânia tinha um “valor espiritual”, um combate contra os “valores decadentes do Ocidente”.

Não é apenas retórico. O Patriarcado desfruta de isenções fiscais, propriedades milionárias, envolvimento indireto com negócios de petróleo e tabaco , e uma influência cultural que remonta à antiga simbiose entre o trono e o altar no Império Bizantino.

Mas o preço é alto. Quando a fé se torna instrumento do Estado, ela se corrompe. O altar deixa de ser lugar de sacrifícios, e passa a ser palco de conveniências.

Contrastemos essa figura com os verdadeiros pastores da Igreja: São João Crisóstomo , exilado e perseguido por denunciador a luxúria do clero; Santo Inácio de Antioquia, devorado por leões por amor a Cristo; São Basílio Magno, que rejeitou privilégios e viveu entre os pobres.

Estes não vestiam ouro nem calçavam sapatos italianos. Vestiam o sofrimento do povo, calçavam a poeira da estrada. E por isso deixaram rastros eternos.

Não se trata aqui de atacar a Ortodoxia — tradição venerável e irmã na fé, guardiã de tesouros litúrgicos e espiritualmente inestimáveis. Mas sim de clamar, como o profeta:

"Ai dos pastores que se apascentam a si mesmos!" (Ez 34,2)

O escândalo não é só no luxo. Está na incoerência. Está em ver um sucessor dos apóstolos viver como um oligarca, enquanto o povo fiel jejua, reza e clama por líderes santos.

O reflexo do relógio na mesa do patriarca tornou-se símbolo de uma Igreja que talvez não brilhe mais com a luz de Cristo, mas apenas reflete a vaidade deste mundo .

A nós, católicos orientais, cabe aprender com esse drama. Que tipo de pastores formamos? Que tipo de Igreja temos sustentada? Estamos mais preocupados com a cruz ou com a prestígio?

O verdadeiro ouro da Igreja é a santidade. Tudo o mais é vaidade, poeira e escândalo.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

 

Quer conversar? Estou à disposição.

Se algo que você leu aqui falou ao seu coração, se atravessa um momento difícil, ou apenas deseja trocar ideias com serenidade e verdade — saiba que pode me escrever.

📩 E-mail para contato: matheuslinofmdj@gmail.com
Respondo pessoalmente, com atenção e respeito.

Nada substitui o valor de uma boa conversa — mesmo que por palavras escritas.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Nossa Senhora do Monte Carmelo: Mãe da Contemplação e do Combate

 


Nossa Senhora do Monte Carmelo: Mãe da Contemplação e do Combate

No dia 16 de julho, a Igreja se curva em honra áquela que, do alto do Monte Carmelo, vela pela Igreja militante: Nossa Senhora do Carmo. Esta memória não é apenas mais uma página piedosa do calendário litúrgico; é um grito do Céu para que recordemos a beleza da oração, da penitência e da fidelidade.

O Monte Carmelo, na Terra Santa, sempre foi um lugar de encontro com Deus. Desde os tempos do profeta Elias, ali ressoaram as palavras inflamadas: “O Senhor é Deus!” Foi naquele monte sagrado que a tradição mariana floresceu entre as eremitas que buscavam uma vida oculta em Deus, longe do barulho do mundo e perto da Palavra.

Séculos mais tarde, quando a Ordem do Carmo se espalhou pelo Ocidente, a Virgem Santíssima fez questão de selar sua predileção por aqueles monges e fiéis. Em 1251, São Simão Stock recebeu dela o escapulário, promessa visível da proteção materna de Maria. Não é superstição, não é amuleto; o escapulário é um manto espiritual, sinal de consagração e pertença à Mãe do Céu.

Quem veste o escapulário e vive em estado de graça carrega consigo a promessa da salvação: “Quem morrer com ele, não padecerá o fogo eterno.” É um chamado à santidade, uma lembrança diária de que pertencemos ao Exército de Cristo e que Maria é nossa Capitã.

Nossa Senhora do Carmo é Mãe da vida interior. Ela não nos convida a grandes discursos, mas ao recolhimento do coração. É padroeira dos contemplativos, dos que vivem escondidos aos olhos do mundo, mas luminosos aos olhos de Deus. Também é advogada dos pecadores, Mãe dos que erram, consolo dos aflitos.

Num mundo que se perde em mil distrações e vícios, o Monte Carmelo ergue-se como farol, apontando o caminho do silêncio, da oração e da penitência. Celebrar Nossa Senhora do Carmo é registrar que temos uma Mãe que não se esquece dos seus filhos, que nos cobre com seu manto e que intercede com poder junto ao seu Filho.

Neste dia santo, sejamos simples e fiéis. Renovemos nossa consagração, vistamos o escapulário com devoção, rezemos o terço com amor e, acima de tudo, vivamos como verdadeiros filhos de Maria. Ela nos conduz, sempre, ao coração do seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O Drama das Mulheres no Século XXI: Da Graça da Maternidade ao Vazio do Mercado


O Drama das Mulheres no Século XXI: Da Graça da Maternidade ao Vazio do Mercado

Vivemos tempos de grandes paradoxos. Num século em que nunca se falou tanto em “libertação feminina”, nunca se viu tantas mulheres infelizes, ansiosas, solitárias. Trocaram a alegria serena da maternidade pela companhia de um animal de estimação; Abandonaram o lar, onde pensamos construir uma fortaleza de amor, para disputar cargos em empresas que, na primeira oportunidade as descartam sem piedade.

O feminismo prometeu igualdade, mas entregou revolta. As mulheres de outrara eram pilares da família e da sociedade; hoje são treinadas a ver no homem um inimigo, no filho um estorvo, no lar uma prisão. A maternidade virou fardo, o casamento um contrato frágil, a feminilidade uma vergonha a ser escondida atrás de discursos de “empoderamento”.

Antigamente, o sobrenome do pai era honra, linhagem, continuidade. Agora, virou bandeira de resistência contra o que chamamos de “patriarcado”. Querem apagar uma herança familiar, desfazer-se das tradições e cortar as raízes da civilização. E quando por acaso têm filhos, não raro, preferem terceirizar a criação — ao Estado, às escolas progressistas, à babá, ao pai “desconstruído” que troca fraldas enquanto elas continuam “se realizando” nos escritórios.

A mulher moderna foi ensinada a guerrear contra a própria natureza. E qual é o resultado? Multidões de mulheres remédios-dependentes, esgotadas, em guerra interna. O feminismo, longe de promover a justiça entre os sexos, alimenta um ressentimento tóxico contra o masculino, propagando não igualdade, mas ódio.

As consequências estão aí: famílias despedaçadas, crianças sem rumo, homens sem coragem, mulheres sem paz. O caminho para a verdadeira liberdade não está em negar quem somos, mas em aceitar — com orgulho — o chamado mais sublime da mulher: ser mãe, ser educadora, ser a alma do lar. E, para aquelas chamadas à vida profissional, que esta nunca seja em detrimento daquilo que é mais precioso.

O tempo revelará, como sempre revelou, que quando uma mulher abandona sua missão natural, toda a sociedade sangra.


sábado, 12 de julho de 2025

A Verdade da Liberdade: Só é Livre Quem Se Entrega a Deus

A Verdade da Liberdade: Só é Livre Quem Se Entrega a Deus

Vivemos num tempo em que a palavra liberdade se tornou um ídolo. Ela é hasteada como bandeira por todos os ventos ideológicos, entoada nos púlpitos do mundo secular como se fosse o próprio deus que guia os destinos humanos. Mas, à luz da fé cristã, essa liberdade que se proclama nas praças e nas redes não passa de uma miragem: é grilhão disfarçado, cativeiro que se mascara de autonomia.

Só é verdadeiramente livre aquele que se entrega a Deus. Pode parecer contradição, mas é o maior dos paradoxos evangélicos: a liberdade não está em fazer tudo o que se quer, mas em querer somente aquilo que Deus quer. Porque o querer humano, ferido pelo pecado, é caprichoso e cego; mas o querer de Deus é sabedoria eterna, fonte de paz e plenitude.

O homem moderno, ao rejeitar a obediência a Deus, não se tornou mais livre — tornou-se escravo de si mesmo. Santo Agostinho já dizia: “Servus est, qui peccato servit” — escravo é aquele que serve ao pecado. E o pecado é justamente essa rebelião do “eu” contra o Criador. O que parece liberdade — escolher, gozar, possuir — torna-se prisão invisível, pois todo aquele que se fecha à graça se encarcera nas suas paixões.

São Máximo, o Confessor, afirmou com precisão:

“A liberdade consiste em mover-se segundo a natureza; o pecado é o movimento contra a natureza.”

Agora, a nossa natureza foi criada para Deus. Viver longe d'Ele é, portanto, viver contra si mesmo. Um peixe fora da água pode se debater com todas as suas forças, mas não é livre — está morrendo. Assim também a alma que se aparta da vontade divina: ela grita por liberdade, mas está sufocando.

Cristo, o verdadeiro Homem, nos revela o caminho da liberdade: “Não se faça a minha vontade, mas a Tua” (Lc 22,42). No Horto das Oliveiras, Ele nos mostra que a entrega à vontade do Pai é o ápice da liberdade. O demônio, no deserto, oferecido a Jesus pela liberdade do mundo: pão sem cruz, poder sem obediência, glória sem sacrifício. E o Senhor decidiu. Porque a liberdade sem Deus é tentativa, é desvio, é queda.

São João Damasceno ensinou:

“Liberdade é poder escolher o bem segundo a reta razão, iluminada pela fé.”

Sem essa luz, a escolha deixa de ser liberdade e se torna erro. Por isso, a Igreja sempre uniu a liberdade à verdade . Como ensinou São João Paulo II na Veritatis Splendor , "a liberdade não é um fim em si mesma, mas está ao serviço da verdade e do bem". O homem só se realiza plenamente quando adere à Verdade, que é uma Pessoa: Jesus Cristo.

A história da Igreja é repleta de homens e mulheres que viveram essa liberdade santa: mártires que entregaram a própria vida, religiosos que renunciaram ao mundo, mães de família que ofereceram a cada dia no silêncio da fidelidade.

São Francisco de Assis, ao despir-se diante do pai, diante do bispo, não ficou nu — ficou livre. Santa Teresa de Ávila, ao escrever "Só Deus basta" , libertou-se de todas as ilusões passageiras. E São Paulo, o apóstolo das algemas, escreveu da prisão cartas que libertam almas até hoje.

Eles eram livres porque estavam presos a Deus. E isso basta.

A verdadeira liberdade não está em fazer o que eu quero, mas em me tornar quem eu sou aos olhos de Deus. E só posso ser quem sou, quando me deixo moldar pelas mãos do Criador.

Assim como o barro não se modela sozinho, a alma humana não se salva sozinha. A liberdade não é conquistada, mas recebida. E ela é recebida no momento em que ajoelho, me calo, e digo: “Fiat voluntas tua” — “Seja feita a Tua vontade.”

Eis a verdade da liberdade: só é livre quem se entrega a Deus. 




sexta-feira, 11 de julho de 2025

Rezar Sim, Mas com os Pés no Chão e o Coração de Carne

 


Rezar Sim, Mas com os Pés no Chão e o Coração de Carne

Vivemos num tempo em que a espiritualidade corre o risco de se tornar um disfarce elegante para a fuga. Rezamos, fazemos novenas, recitamos ladainhas, mas às vezes esquecemos o essencial: Deus não nos quer apenas ajoelhados — Ele nos quer transformados.

Não podemos ser pessoas de oração se não formos, antes, verdadeiramente humanos, atentos à nossa realidade, às dores do outro, às nossas faltas mais escondidas. A oração que não encarna na vida se torna ilusão. E Deus, que se fez Carne, não tem parte com fantasmas.

Espiritualidade sem humanidade é teatro. E Deus não assiste peças.

Oração não é esconderijo. É fornalha. É no silêncio da oração que Deus nos revela nossas sombras, nossas mentiras, nossas máscaras. E, se permitirmos, Ele mesmo nos molda com mãos de oleiro. Não para que sejamos anjos na terra, mas para que sejamos homens verdadeiros, como Cristo foi: compassivo, presente, justo, manso.

Há quem reze longamente e maltrate quem vive ao seu lado. Há quem jejue, mas julgue com frieza. Há quem fale com Deus, mas fale mal com os irmãos. Isso não é espiritualidade — é orgulho com incenso.

A oração cristã, quando verdadeira, nos devolve ao mundo com olhos novos, língua mais paciente, passos mais leves, alma mais doce.

Quem reza, deve ser doce. Quem comunga, deve ser gentil. Quem contempla, deve sorrir.

A vida de oração não nos isola do mundo — ela nos mergulha nele com mais ternura. São Francisco beijava leprosos. Santa Teresinha varria o chão como se tocasse o Céu. São Bento dizia que nada se antepusesse à oração — mas também não admitia monges murmuradores ou ranzinzas.

Ser piedoso sem ser gentil é como uma vela acesa dentro de uma caixa fechada: apaga rápido e sufoca quem se aproxima.

Ser de oração é ser humilde, não teatral. É ser paciente, não passivo. É ser alegre, não histérico. É ser presente, não apenas piedoso. Como dizia São Filipe Néri: "Tristeza e melancolia, fora da minha casa!"

A oração que não muda o coração, não chega ao Céu.

Quem reza de verdade, torna-se mais atento. Olha os pobres com compaixão. Pede perdão com sinceridade. Suporta as falhas do outro sem escândalo. Alegra-se com a vida, ainda que chorando por dentro. Porque quem frequenta o coração de Deus aprende a viver com o coração dilatado.

Não se trata de ser “bonzinho” — trata-se de ser cristão. E o cristão é aquele que, tendo tocado o Céu na oração, volta para lavar os pés dos outros com alegria.

Mãos ao alto, pés no chão e coração nos irmãos.

Rezar é essencial. Mas rezar bem, com verdade, nos torna mais humanos, mais doces, mais atentos. Uma espiritualidade que nos isola ou nos endurece, não vem de Deus.

A oração que Deus escuta é aquela que nos muda. Que nos torna melhores no silêncio e na convivência. Que nos dá coragem para enfrentar a vida — e ternura para vivê-la com leveza.

Porque, no fim, a santidade não é altivez. É humanidade transfigurada pela graça.

Rezar, sim. Mas também sorrir. Ouvir. Amar. Perdoar. Ser luz — e não lâmpada que queima os olhos.

sábado, 5 de julho de 2025

A Igreja Siríaca em Belo Horizonte.

 A Igreja Siríaca em Belo Horizonte.

Sou membro da Igreja Siríaca em Belo Horizonte, e é com gratidão que compartilho um pouco da história e da realidade dessa comunidade tão rica em fé, cultura e tradição. Nossa paróquia faz parte da Arquidiocese Sirian no Brasil, mais conhecida popularmente como uma das chamadas igreja de colônia.

Esse nome — igreja de colônia — é usado para designar as comunidades formadas a partir da imigração de famílias vindas do Oriente Médio, especialmente da Síria, Líbano, Palestina, Turquia e Iraque, que chegaram ao Brasil ao longo do século XX trazendo uma fé antiga, profunda e viva. Em meio às dificuldades da imigração, essas famílias fundaram as primeiras igrejas siríacas no país, preservando a língua, a liturgia e os costumes religiosos de seus antepassados.

Aqui em Belo Horizonte, a Paróquia São Pedro, fundada em 1959, continua até hoje sendo um lugar de encontro, oração e comunhão. Nossa comunidade é composta majoritariamente por fiéis de origem árabe, muitos descendentes diretos dos imigrantes que edificaram com devoção esse pequeno, mas pedaço significativo do Oriente no coração de Minas Gerais.

Embora existam atualmente dois ramos organizacionais no Brasil — as igrejas de colônia, voltadas ao atendimento das comunidades tradicionais de imigrantes, e o da Igreja Missionária, voltada à evangelização dos brasileiros em geral — ambos trazem a mesma raiz de fé e tradição, vivendo a herança espiritual do Oriente cristão em solo brasileiro.

Nosso arcebispo é Dom Severios Malki Mourad, responsável pelas igrejas de colônia no Brasil, com residência em São Paulo. Ele acompanha pastoralmente essas comunidades, mantendo viva a caminhada litúrgica e espiritual com as tradições recebidas de gerações anteriores.

Na nossa paróquia celebramos com reverência a Liturgia de São Tiago, quase toda em aramaico, a mesma língua falada por Nosso Senhor. Nossos cantos, celebrações e símbolos expressam a beleza e a profundidade de uma fé moldada pelo tempo, pela fidelidade e pela cruz.

Pertencer a essa comunidade é, para mim, um dom e uma responsabilidade. É viver imerso numa tradição apostólica viva, onde a memória das origens se transforma em esperança concreta. Em meio às montanhas de Minas, mantemos viva a herança das terras bíblicas, oferecendo ao Senhor o louvor dos nossos antepassados, agora em terra brasileira, mas com o mesmo coração voltado ao céu.

Nosso pároco é o Raban Awgin Souhail Issa, sacerdote zeloso e atento às tradições e necessidades do nosso povo. A paróquia está localizada na Rua Comendador Nohme Salomão, número 58, no bairro da Lagoinha, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O CEP é 31210-050.

Celebramos a Santa e Divina Liturgia todos os domingos, às 10 horas da manhã. A celebração é, em grande parte, realizada nos idiomas árabe e aramaico, preservando assim a riqueza e a beleza da tradição litúrgica que recebemos dos nossos pais na fé.

Todos são muito bem-vindos.

A Importância de se Preparar para a Divina Liturgia com Oração

 

A Importância de se Preparar para a Divina Liturgia com Oração

A Divina Liturgia não é apenas uma celebração dominical, uma obrigação semanal ou um encontro comunitário. É o Céu descendo à terra. É a Cruz sendo erguida de novo, o Calvário se tornando presente, o Corpo de Cristo sendo oferecido, e nós — frágeis e distraídos como somos — sendo convidados a participar do banquete do Cordeiro.

Ora, quem ousaria se apresentar ao altar do Rei dos reis com o coração frio, as mãos vazias de súplica e os lábios ressequidos de silêncio? Quem subiria ao Monte Sinai sem antes tirar as sandálias da alma, sem antes fazer silêncio diante do Mistério?

Por isso, preparar-se com oração antes da Liturgia não é um capricho dos piedosos, mas uma exigência de quem deseja verdadeiramente encontrar-se com Deus. A oração, nesse contexto, é como acender a lamparina do coração, é dispor a alma para a visita do Esposo, é limpar o templo interior para que o Senhor encontre morada.

A Igreja, com a sabedoria dos séculos, sempre recomendou orações preparatórias antes da Liturgia — seja a leitura dos salmos penitenciais, seja a súplica do publicano, seja o pedido de purificação. Não se trata de cumprir uma formalidade, mas de alinhar a alma com o que está prestes a acontecer: o eterno entrando no tempo, o Verbo se fazendo alimento, e nós, barro e poeira, sendo feitos partícipes da eternidade.

Sem oração, a Liturgia vira rito. Com oração, ela se torna fogo.
Sem oração, somos espectadores. Com oração, somos participantes.
Sem oração, comungamos pão. Com oração, comungamos Deus.

Assim, antes de subir ao templo de pedra, é preciso descer ao templo do coração. Recolher-se, calar as vozes interiores, pedir perdão, agradecer, adorar. Só assim a Liturgia será verdadeiramente “divina” — não apenas por Aquele que nela age, mas porque nós mesmos, preparados e orantes, nos deixamos transfigurar por Ela.

Quem reza antes da Liturgia não apenas se prepara para assistir ao Mistério — prepara-se para ser transformado por ele.




sexta-feira, 4 de julho de 2025

Poema — Ardor do Carmelo




Poema — Ardor do Carmelo

Nas montanhas altas e frias do tempo,
Silêncio e solidão teciam o alento.
Ali viviam, em paz e oração,
Eremitas do Carmelo, com firme vocação.

Homens e mulheres, unidos no véu,
Clausura selada, promessas ao Céu.
Rostos velados, almas tão puras,
Ofereciam ao mundo suas dores mais duras.

Onze anos de céu na terra escondida,
Monastério, altar, a vida oferecida.
Com um bispo, irmãos, e irmãs ao redor,
Ali repousava o zelo maior.

Mas o mundo, cruel, rompeu os portões,
Tomou-lhes as casas, quebrou os padrões.
Sem abrigo, sem mitra, sem pão,
Restou-lhes apenas o Deus da unção.

Foram lançados, dispersos no chão,
Com nada na mão — mas com fogo no coração.
Reconstruíram, tornaram a erguer,
Mas de novo vieram e fizeram doer.

Onde repousam agora o filhos do Carmelo?
Onde escondem em seu peito o ardor sacro e belo?
Não há telhado, nem chão garantido,
Mas há o Céu — e um zelo infligido.

Sim, a luta persiste, não cessam jamais,
Pois vivem a chama dos tempos profetais.
Elias, o forte, um dia chorou,
Mas ergueu-se e andou — e o mal enfrentou.

Descansaram um tempo, agora é a hora,
A batalha começa, e o mundo devora.
O anticristo avança com engano e riso,
Mas eles combatem com o Cristo indeciso.

Não por glória, nem fama, nem voz,
Mas porque Deus caminha com eles — e em nós.
Carmelitas da montanha, sem rosto ou brasão,
São tochas acesas na escuridão.

E a casa deles? Talvez nunca se veja.
Mas cada coração que ora — é uma igreja.
E onde descansam? Em Cristo, na cruz.
Pois o Carmelo não morre… ele arde em Jesus.

Matheus Lino


quarta-feira, 2 de julho de 2025

Entre o Direito e o Presente: A Arte de Agradecer as Coisas Boas da Vida

 


Entre o Direito e o Presente: A Arte de Agradecer as Coisas Boas da Vida

Há fotos que parecem pequenos fragmentos da modernidade. Esta é uma delas. Olavo de Carvalho, de pé à porta de seu trailer, sob o céu límpido e as folhas douradas de um outono americano, carrega em sua expressão o peso de quem muito viveu, muito leu e, sobretudo, muito pensou. A imagem parece silenciosa, mas ecoa uma pergunta que atravessa os séculos:  Como você encara as dádivas da vida? Como um direito conquistado… ou como um presente inesperado?

No dia 7 de junho de 2017, Olavo publicou nas redes sociais uma frase que resume, com a precisão de um ferreiro de palavras, essa tensão existencial:

“Tudo depende de saber se você desfruta das coisas boas da vida como quem exerce um direito ou como quem recebe um presente.”

Essa sentença tem cheiro de café passado, de livro antigo aberto numa tarde de sábado, de conversa de varanda quando o sol já vai se pondo. Ela nos chama de volta para uma postura interior que, nos tempos modernos, parece cada vez mais rara: a gratidão despretensiosa.

Vivemos hoje num mundo onde o vocabulário dominante é o da "autenticidade dos desejos" e da "realização pessoal a qualquer custo". Somos educados para a exigência da vida, como se ela fosse um contrato em cartório. Queremos garantias, direitos, bônus e reembolsos emocionais. Quando algo bom acontece, parece apenas uma pequena correção de um certo desequilíbrio cósmico que exige ter felicidade.

Mas a vida – essa velha senhora que tem mais humor do que justiça – não opera assim. Ela distribui suas graças como uma criança distraída joga flores pelo caminho. Há quem saiba recolho-las com as mãos trêmulas de gratidão. Há quem pise nelas, correndo atrás de algo que nunca chega.

Olavo, com seu olhar de filósofo que morou nas duas extremidades da miséria e da contemplação, nos provoca a pensar: Você está vivendo como credor da existência ou como um convidado inesperado numa festa que nunca sonhou estar?

Quem vive como credor nunca sorri de verdade. Está sempre calculando o que falta. Já quem vive como convidado… esse ri com os olhos, com os ombros, com a alma inteira. Sabe que cada pôr do sol, cada amizade sincera, cada xícara de café quente, é um pedaço de eternidade entregue de bandeja.

A escolha é sua.

Que essa imagem e essa frase fiquem gravadas como um lembrete simples, mas duro como pedra: a vida não deve nada a ninguém. Tudo está presente. Tudo é graça.



terça-feira, 1 de julho de 2025

O Silêncio que Cura: Um Encontro com a Misericórdia

 


O Silêncio que Cura: Um Encontro com a Misericórdia

Em um canto discreto de uma igreja antiga, paredes gastas pelo tempo, o reboco rachado testemunha mais histórias do que qualquer livro. A cena é simples, mas carregada de significado eterno: um homem ajoelhado diante de um sacerdote, em confissão.

Do lado de fora, o mundo corre frenético, impaciente, barulhento. Aqui dentro, reina um silêncio denso, quase palpável, como o intervalo entre o trovão e a chuva. Não há tecnologia, não há microfones, não há hashtags. Apenas duas almas: uma que carrega o peso das próprias misérias, e outra que, com estola roxa e mãos calejadas por muitas absolvições, oferece o ouvido, o conselho e, por fim, as palavras de redenção.

Quantos anos de culpa traz aquele penitente? Quantas noites mal dormidas? Quantas promessas de mudança adiadas? Agora, tudo se resume a uma sugestão, um fio de voz, dito talvez entre lágrimas ou com um sorriso envergonhado. O confessionário — ainda que improvisado — é um pequeno tribunal da misericórdia, onde a sentença é sempre a mesma: "Ego te absolvo...".

A imagem é um lembrete para o homem moderno, tão acostumado a racionalizar os próprios erros e terceirizar a culpa. No confessionário, não há espaço para desculpas ensaiadas. Ali, cada palavra tem o peso de um tijolo no muro que separa a alma de Deus. E cada absolvição é um pedaço desse muro que se desaba, abrindo novamente caminho para a graça.

Os antigos sabiam disso. Por isso ajoelhavam-se com humildade, como quem sabe que está diante de um mistério maior que a própria vida. Hoje, muitos fogem da confissão, inventando teologias caseiras para justificar a ausência. Mas a verdade é dura como pedra de altar: só há um caminho para a reconciliação sacramental, e passa por esse ato concreto de humilhação e confiança.

Talvez o que mais nos incomode nessa imagem não seja o constrangimento de contar os pecados, mas uma lembrança de que, apesar de todos os nossos discursos progressistas, ainda somos feitos da mesma massa frágil dos nossos avós. Pecadores por natureza. Dependentes da misericórdia.

Que esta cena nos provoque, nos incomode e, acima de tudo, nos mova. Que o próximo banco de madeira seja o nosso. Que o próximo silêncio denso seja o que antecede a nossa própria absolvição.

Porque, no fim, a maior liberdade não está em fugir de Deus… mas em voltar para Ele.


segunda-feira, 30 de junho de 2025

Toque e Cura

 


Toque e Cura

Há uma cena no Evangelho que atravessa os séculos com a força de um suspiro desesperado: uma mulher, anônima, escondida no meio da multidão, doze anos de sofrimento, sangrando vida e esperança dia após dia. Ela não tem discurso elaborado, nem planos mirabolantes. Ela tem apenas uma certeza simples, quase infantil, mas de uma fé violenta: "Se eu ao menos tocar na orla do manto dele, serei curada."

Ali estava a síntese de toda a alma humana em sofrimento: o desejo puro, concentrado e radical de querer viver, querer sarar, querer voltar a ser gente. Não pediu atenção, não pediu uma consulta, não quis explicar teológica sobre a origem de sua dor. Ela queria o toque. Só o toque.

Cristo, que conhece o peso de cada lágrima derramada no silêncio dos quartos escuros, percebe o toque, sente a força que sai dele mesmo, e se vira para ela. Não porque o toque em si teve um poder mágico, mas porque aquela mulher já estava curada antes mesmo de tocar. O toque era só o selo. O que você curou foi o querer.

Agora, transportamos isso para uma cena discreta, mas igualmente sagrada, da sala de psicoterapia.

O paciente chega. Muitas vezes, também sangrando invisivelmente há anos. Sangue emocional, afetivo, existencial. Alguns vêm arrastados pela família, outros com olhares cansados, céticos, desiludidos de tudo. Mas quando, num lampejo de verdade interior, o paciente diz, mesmo que timidamente: "Eu quero mudar" , "Eu quero entender" , "Eu quero parar de sofrer" , ali está o toque. Ali, o processo começa. Antes da técnica, antes da intervenção, antes do diagnóstico manual, existe o querer. Um querer que abra portas internas que nenhum terapeuta, por mais habilidoso, conseguiria forçar.

Na terapia, o toque da barra do manto se transforma no primeiro "quero" sincero.

A psicoterapia, assim como a cura de Cristo, não é um truque de palco, nem uma fórmula instantânea. É um encontro. Um terapeuta oferece o caminho, segurança a lanterna, ajuda a atravessar os cantos escuros da alma. Mas o passo… o passo tem que vir de dentro. Tem que vir daquele querer profundo, que às vezes nem sabe nomear o que deseja, mas sabe que não pode mais continuar sangrando.

No fim, o processo terapêutico é essa peregrinação até a orla do manto.

O terapeuta pode mostrar o caminho, mas é o paciente que estende a mão.

É o que eu quero que cure.



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