domingo, 29 de junho de 2025

A Religião dos Sem Religião: O Paradoxo Brasileiro da Fé Etiquetada

 


A Religião dos Sem Religião: O Paradoxo Brasileiro da Fé Etiquetada

Vivemos tempos curiosos. Na imagem que acompanha este texto, vemos uma sátira simples, mas de uma profundidade desconcertante: no pódio das maiores "religiões" do Brasil, o terceiro lugar vai para os... "sem religião" . Isso mesmo. Até quem se declara sem fé, sem dogma, sem templo e sem liturgia agora virou estatística com rótulo próprio.

O personagem à direita, veste uma camiseta que diz "sem religião (9,4%)" , ironiza a própria situação: "Nem acredito que virei religião..." . O trocadilho é revelado e, como toda boa ironia, carrega uma verdade incômoda.

Fica a pergunta: o que significa "ser sem religião" num país onde até a ausência de fé vira categoria demográfica?

A observação é, antes de tudo, sociológica. Estamos numa era de identidades líquidas , onde tudo precisa ter um nome, uma bandeira e um espaço no gráfico de pizza. A sociedade moderna, com seu apetite voraz por classificações, não tolera o vácuo. O que não tem definição, ela define. O que não tem cor, ela pinta. O que não tem forma, ela molda.

Muitos dos que se declaram sem religião acreditam estar numa posição de "neutralidade espiritual", como se estivessem acima da briga dos deuses. Mas aí está o engano: o próprio ato de negar o transcendente, de se colocar fora da esfera religiosa, já é uma afirmação de crença.

Afinal, escolher não crer é, em si, uma forma de crença. Uma aposta existencial. Uma profissão de fé... na ausência de fé.

Nietzsche já nos alertava: o homem moderno matou Deus, mas ainda carrega o cheiro de Seu cadáver nas mãos. Mesmo ao fugir da religião, o ser humano não escapa da necessidade de sentido, de pertencimento, de rituais (ainda que laicos), de dogmas (ainda que disfarçados de ciência ou progressismo).

O mais irônico é que, na ânsia de não ser rotulada, o "sem religião" agora carrega uma etiqueta tão grande quanto a de qualquer outro grupo.

Quer ver? Experimente dizer numa roda de conversa que você é "sem religião", mas acredita em algumas coisas espirituais. Alguém vai logo perguntar: "Ah, então você é espiritualista? Deísta? Agnóstico? Ateu?"... Não há escapatória. O sistema precisa que você encaixe. Você precisa vender. Você precisa contar sem censura.

O pódio da charge revela também outro sintoma: nossa obsessão com números . O valor de uma crença, de um grupo ou de uma ideia, parece depender de quantos estão nela. Maioria? Minoria? Crescendo? Em queda? Como se o sentido último da fé pudesse ser traduzido em porcentagens.

O problema é que, ao transformar tudo em número, a gente perde o essencial: o mistério. Aquilo que não cabe em gráficos, nem em relatórios do IBGE.

No fim das contas, o Brasil é um país onde até o não-crente acaba tendo que se ajoelhar diante de algum altar... nem que seja o altar da estatística.

A imagem, com seu humor mordaz, nos joga na cara o retrato de um povo que, mesmo sem saber no que crê, continua precisando de um lugar para chamar de seu. Sem gráficos. Sem censura. Sem rótulo.

Como já disse o velho Chesterton: "Quando o homem deixa de acreditar em Deus, ele não passa a não acreditar em nada. Ele passa a acreditar em qualquer coisa."

E, ao que parece, até na própria falta de crença.


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