domingo, 1 de junho de 2025

O Verme, a Carne e a Imortalidade: Uma Dedicatória à Literatura Brasileira.

 

O Verme, a Carne e a Imortalidade: Uma Dedicatória à Literatura Brasileira

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico, como saudosa lembrança, estas memórias póstumas.

Assim se abre Memórias Póstumas de Brás Cubas , não com perfume de flores frescas ou promessas vãs, mas com o hálito da morte e um sorriso enviado. Nada de véus, nada de salamaleques. Machado de Assis não oferece flores ao leitor: oferece ossos. Com essa lâmina inicial, fria e definitiva, ele crava na pedra da literatura brasileira a sua heresia inaugural. Escrever, não para agradar — mas para desenterrar. A primeira lição é clara como um epitáfio: aqui, não se corta o público — escreve-se para os vermes. Eles sim, críticos honestos, imunes a modismos e vaidades.

Ah, uma literatura brasileira! Nascida entre a senzala e o salão, ela pulsa com sangue contraditório, profundamente humano, cruel e místico. Enquanto os românticos se afogavam em lágrimas de papel-perfumado, Machado empunhava a pena como um bisturi, abrindo as vísceras da alma com eficácia cirúrgica. Não há ilusão nem ornamento — há apenas o crucifixo da existência, esculpido em prosa.

Quem lê essa dedicatória sem estremecer, ou leu superficialmente... ou já foi devorado por dentro.

Machado não oferece seu livro a uma musa etérea, nem ao Deus dos altares, nem ao “povo” — esse ente abstrato tão interessante usado e tão pouco lido. Dedicou-o ao verme. Porque o verme não elogia, o verme não interpreta. Ele consome. E nisso há uma espécie de justiça. O verme é o único leitor que nos lê por inteiro — da epiderme ao osso. É a ele que Machado confia em sua obra, porque nele reconhece o único olhar verdadeiramente imparcial da eternidade.

Essa dedicatória não é mero artifício: é um testamento. Um gesto que fere como um punhal e ilumina como relâmpago. É uma declaração de princípios de uma literatura que não veio para consolar, mas para escancarar. Um chamado à lucidez sem eufemismos. À arte sem maquiagem.

E como isso nos diz respeito!

Machado é o ápice da literatura brasileira porque compreendeu o país por dentro — um país que sorri enquanto apodrece, que sonha em versos enquanto tropeça em injustiças. Ele escreve do alto do mausoléu, mas com os pés fincados no chão batido do Brasil. Sua ironia não é deboche: é o retrato reluzente de nossa hipocrisia cotidiana. Lemos, rimos, engasgamos — porque ali é a alma brasileira: trágica, farsesca, encantadora.

Memórias Póstumas de Brás Cubas não é só um romance: é um réquiem para o ego, uma missa literária onde o defunto é o narrador e o leitor é o cadáver adiado. Publicado em 1881, continua a trovejar em meio à mediocridade branda do nosso presente editorial. Num mundo sedento por likes e frases feitas, essa dedicatória ecoa como uma profecia esquecida: a verdadeira literatura não bajula — ela corroi, desnuda, e permanece.

Celebremos, pois, esse trecho inaugural como quem lê uma escritura sagrada. Porque, de certo modo, é. Uma inscrição na lápide da vaidade, uma oferta à lucidez, um brinde aos que ousam escrever como se já fizeram morrido — e, por isso mesmo, vivem para sempre.

Machado entregou seu livro ao verme, mas deixou a nós — pobres vivos — a dádiva amarga da sua genialidade. E que fortuna é essa: sermos lidos por um morto mais vivo do que todos nós.

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