Vivemos na era da hiperconexão, onde a internet deixou de ser apenas um meio de informação para se tornar um verdadeiro tribunal público. Em poucos cliques, alguém pode ser julgado, condenado e “cancelado” por milhões de usuários. É a chamada cultura do cancelamento — uma característica social que cresce na velocidade de um post viral e que levanta questões profundas sobre justiça, ética e humanidade.
Diferente dos encontros presenciais, onde o rosto, o tom de voz e o olhar reservado para a complexidade dos julgamentos e relacionamentos, o ambiente virtual é marcado pela impessoalidade e pela rapidez. Na internet, não há tempo para escutar, refletir ou contextualizar. O tribunal das redes sociais exige respostas imediatas, posicionamentos definitivos e condenações sumárias. É a justiça instantânea, mas será que é justiça de verdade?
Na convivência real, o erro é frequentemente recolhido com compreensão. Há espaço para o pedido de desculpas, para o amadurecimento, para o recomeço. Quem estava diante de nós pode chorar, pode explicar, pode mudar. Mas na lógica do cancelamento, o erro define uma pessoa. Um tweet infeliz, uma fala mal colocada ou mesmo uma atitude passada, já remediada, pode ser suficiente para apagar toda uma trajetória, reduzir a identidade de alguém ao seu equívoco e isolá-lo da vida pública.
Nesse tribunal virtual, o perdão tornou-se um escândalo. Quem tenta compreender o outro, propor reflexão ou reintegração social é acusado de conivência. Mas o que seria da vida humana sem a possibilidade do perdão? A justiça que exclui a misericórdia perde seu fundamento. A moral que não permite a possibilidade de mudança e redenção deixa de ser humano e se torna apenas sombras.
A fragilidade da justiça virtual está justamente em sua incapacidade de sustentar o processo — ela não promove escuta, não permite apelação, não acompanha o caminho da reclamação. O cancelamento é, muitas vezes, mais um espetáculo de vaidades morais do que um compromisso real com a verdade e a transformação.
Além disso, o anonimato e a distância da internet facilitam um comportamento que permanecem frente a frente com alguém. O ambiente virtual nos desumaniza, tornando fácil esquecer que por trás de uma tela existe uma pessoa com história, família, angústias e sonhos. Nas relações presenciais, a empatia é quase inevitável — ela nasce da convivência. Mas online, essa empatia se dissolve no oceano da indiferença digital.
A cultura do cancelamento não é apenas uma resposta exagerada ao erro dos outros. Ela também é sintoma de uma sociedade que tem dificuldade de lidar com sua própria imperfeição. Julgar o outro nos dá a falsa sensação de superioridade moral e nos isenta do dever de olhar para nossas próprias contradições.
Entre o cancelamento e o perdão, o caminho da justiça verdadeira é o mais difícil — e o mais humano. É o caminho que exige paciência, escuta, discernimento e, acima de tudo, amor à verdade e à dignidade de cada pessoa. Talvez seja hora de recuperar, também no espaço digital, o valor da misericórdia como elemento essencial da justiça. Sem isso, a internet continuará sendo um espaço de condenações sem apelação — e de justiça sem alma.
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