Vivemos na era da imagem. Em todos os cantos, telas brilham com rostos bem maquiados, corpos esculpidos, ambientes organizados e mensagens embaladas por fontes elegantes e filtros meticulosamente escolhidos. A estética deixou de ser apenas um modo de apresentar algo — tornou-se o próprio conteúdo, a própria verdade. Estamos diante de uma tirania suave, sedutora, e por isso mesmo perigosa: a tirania do belo.
Tradicionalmente, a estética sempre esteve ligada a algo mais profundo: a manifestação sensível de uma verdade invisível . No cristianismo oriental, por exemplo, o ícone não é apenas belo — ele é uma janela para o eterno . Na filosofia clássica, o belo, o bom e o verdadeiro formam uma unidade inseparável. O belo era belo porque revelava algo verdadeiro e bom.
Contudo, em nossa sociedade contemporânea, houve uma decisão. O belo foi arrancado de suas raízes metafísicas e se tornou superfície, embalagem, performance. Não é mais o reflexo da verdade; é o disfarce do vazio.
Quantos não se sentem obrigados a parecer felizes, produtivos, espiritualizados ou saudáveis — ainda que não sejam nada disso? As redes sociais alimentam a estética da perfeição, e o sofrimento interior é maquiado com legendas de renovação. A estética deixa de ser expressão e se torna opressão.
Vivemos sob o domínio de uma “ética da aparência”, onde parece irrelevante diante do parecer. Já não importa se alguém é sábio, profundo, santo ou virtuoso. Importa se ele comunica bem, se fala bonito, se tem uma estética refinada e moderna. A forma usurpou o lugar do conteúdo. O vazio se veste de harmonia.
O filósofo Byung-Chul Han, ao refletir sobre a “sociedade da transparência”, mostra como tudo precisa ser visível, mostrável, exposto. A vida interior — silenciosa, imperfeita, contraditória — não tem lugar nesse palco. Tudo deve ser instagramável: o café, o corpo, a oração, o livro, o altar doméstico, a missa. A estética se torna um véu que esconde a aridez da alma.
Essa lógica entra também no campo religioso. As liturgias são ajustadas para ficarem “mais bonitas”. Cânticos são escolhidos por sua melodia e não por sua doutrina. Sermões viram TED Talks. A cruz — símbolo da deformidade redentora — é remanescente por discursos leves, ambientes instagramáveis e uma espiritualidade “limpa” que nunca passa pela dor, pela angústia ou pela purificação interior.
Mas isso não é uma exclusão da beleza. O problema não é o belo em si, mas o belo que não aponta para nada além de si. Há uma beleza que redime, que purifica, que nos eleva a Deus. A beleza da liturgia tradicional, dos ícones, da arte sacra autêntica, da vida de um santo, é uma estética comunitária, que nos introduz no mistério.
Essa beleza não é estética publicitária, mas estética da cruz . Não seduz pela perfeição, mas emociona pela verdade. Não busca agradar o olhar, mas revelar o invisível. Por isso, paradoxalmente, ela pode ser rude, estranha, silenciosa, até mesmo dolorosa — como um ícone bizantino que foge à simetria ocidental.
O caminho não está em abandonar o belo, mas em reconectar a estética com a verdade e o bem . O cristianismo jamais foi inimigo da beleza. Ele é, ao contrário, a religião da Encarnação , onde o Verbo eterno assume forma, rosto, carne.
O rosto de Cristo é o selecionado do belo verdadeiro: marcado, transfigurado, luminoso e ferido ao mesmo tempo . Toda estética que não nos leva a esse Rosto corre o risco de ser tirânica, porque não revela — rímel.
A beleza ainda pode nos salvar — mas não qualquer beleza. Apenas aquela que, como dizia Dostoiévski, nos conduz à verdade crucificada . Que nossos olhos sejam curados da cegueira estética, para que possamos ver além da superfície, e contemplar, com temor e esperança, a beleza que salva porque fere, e fere porque ama .
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