quinta-feira, 16 de outubro de 2025

O que é o tudo que deixamos?

 


O que é o tudo que deixamos?

Na vida religiosa, somos constantemente cercados por pessoas curiosas — alguns motivos por admiração, outros por incompreensão. Nem sempre são almas de fé sólidas; Muitos ainda caminham na superfície das coisas, sem tocar o fundo onde Deus habita. Aproximam-se de nós com perguntas, às vezes simples, às vezes desafiadoras. Tentamos sempre, com caridade e serenidade, oferecer-lhes respostas que não sejam apenas palavras, mas testemunho.

E entre todas as perguntas, há uma que ecoa com mais frequência do que qualquer outra:

“O que faz alguém deixar tudo?”

Essa pergunta é o espelho da reflexão do nosso tempo. Porque o homem moderno já não entende o “deixar”, nem tampouco o “tudo”. 

Ele entende de acumular, possuir, controlar, dominar — mas não de oferecer.
E talvez por isso o testemunho de quem renúncia ao amor escandaliza tanto: porque recorda ao mundo o que ele esqueceu — que só o amor dá sentido à entrega.

Mas afinal, o que é isso tudo de que tanto conversamos?

Será o dinheiro ?
Não nos falta o necessário, e aprender que a verdadeira riqueza é não precisar de nada além de Deus.
Será o conforto ?
Vivemos bem, e com a paz que vem da conformidade.
Será que o poder ?
Servimos Àquele que é o Senhor do universo — e em Seu serviço encontra-se realeza.
Será o prazer carnal ?
Os que só conhecem o prazer da carne nunca provaram o júbilo do espírito.

Então o que é esse “tudo” que tanto espanta, esse tudo que deixamos para trás?
Talvez não seja “coisa” alguma, mas um modo de existir .
O “tudo” é o ego que quer reinar.
É o “eu” que exige, que se impõe, que quer dominar até Deus.
É o desejo de ser o centro — a tentação mais antiga da humanidade: “sereis como deuses” (Gn 3,5).

“Deus não tira nada — Ele apenas esvazia as mãos para que possa receber o Infinito.”
-Santa Teresa de Jesus

Deixar tudo, portanto, não é empobrecer, mas abrir espaço .
Não é negar a vida, mas libertá-la da posse.
O “tudo” que deixamos é o direito de mandar em nós mesmos , e em troca recebemos o dom de sermos servos de Alguém maior.

É paradoxal, mas é real: quem se entrega totalmente a Deus, não se anula — se encontra .

“Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por causa de Mim,  encontre-la-á.” (Mt 16,25)

O mundo pensa que liberdade é fazer o que se quer.
Mas isso é escravidão disfarçada — porque quem vive segundo os caprichos da vontade, logo se torna servo de suas paixões.
A verdadeira liberdade é fazer o que se deve , e amar o dever até que ele se torne alegria.

“Servir a Deus é reinar.”

A civilização moderna é marcada por um culto ao eu . Nietzsche proclamou a morte de Deus , mas o que ele realmente matou foi o homem que acreditou em algo maior que si mesmo. Desde então, o altar ficou vazio — e o ego sentou-se sobre ele. O homem moderno adora o próprio reflexo, e chama isso de autonomia.

“O homem que se faz seu próprio deus acaba satisfeito ao pior dos tiranos.”
-Santo Agostinho

Quando o ego é o ídolo, tudo se fragmenta.
A vida se torna uma sequência de desejos insaciáveis, e o coração se perde no ruído das próprias vontades. Quem vive para o “eu” perde o sentido do “nós”, e consequentemente, o sentido de Deus.

E aqui está o ponto: o religioso, ao “deixar tudo”, não foge do mundo — liberta-se do cativeiro de si mesmo. Enquanto o homem comum precisa de mil distrações para sustentar o vazio, o consagrado aprende a habitar no silêncio, onde tudo o que é humano se encontra com o divino.

“No fim, o coração humano tem apenas um desejo: ser possuído pelo Amor que o criou.”
-São João da Cruz

Deixar tudo é um ato de coragem. Mas é também um ato de fidelidade — fidelidade a um chamado que não suporta meias medidas, que exige o todo e devolve o Todo. A vocação é uma chama que consome, mas não queima; é como a sarça ardente que Moisés viu: o fogo é de Deus, e a planta continua viva.

“O amor, quando é verdadeiro, não se mede — consome.”
-Santa Catarina de Sena

Por isso, quando alguém pergunta:
— “Como vocês tiveram coragem de deixar tudo?”
Eu sorrio e respondo:
"Não deixamos nada. Apenas devolvemos o que nunca nos pertenceu."

Porque tudo o que o mundo chama de “tudo” — sucesso, prazeres, controle, opinião — é apenas pó.
E como lembra o Eclesiastes , vaidade das vaidades, tudo é vaidade (Ecl 1,2).
O que deixamos, afinal, é o efêmero. E o que ganhamos é o Eterno.

O mundo nos chama de tolos por termos deixou tudo; mas é o mundo que se perde tentando possuir o que jamais poderá segurar. Deixar tudo é, no fundo, abrir as mãos para receber o infinito.
E só compreende isso quem já ouviu Deus chamar pelo nome, no silêncio do coração.

“Deus basta.”
-Santa Teresa d'Ávila

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