quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Sociedade Atual e a Incapacidade de Compreender o Mito da Caverna

 


A Sociedade Atual e a Incapacidade de Compreender o Mito da Caverna

O mito da caverna, narrado por Platão, é um daqueles textos que atravessam os séculos como uma lâmina afiada. Não se trata de uma história antiga e ultrapassada; trata-se de um espelho incômodo. Nele, prisioneiros acorrentados desde o nascimento veem apenas sombras projetadas na parede da caverna e tomam essas sombras por realidade. Quando um deles se liberta e conhece o mundo verdadeiro, volta para libertar os outros — e é recebido com hostilidade, ridicularização e violência.

Parece familiar? Pois é.

Vivemos numa época saturada de informação, mas empobrecida de reflexão. Nunca tivemos tanto acesso à “luz”, e nunca estivemos tão confortáveis nas sombras. O homem contemporâneo não está preso por correntes de ferro, mas por correntes de vício, distração e conformismo. A caverna de hoje tem nome: redes sociais, polarizações vazias, narrativas fabricadas. São sombras que se movem rápido, piscam, brilham — e nos dão a falsa sensação de estarmos vendo tudo, quando na verdade vemos nada.

O problema é que a compreensão do mito exige mais que saber “resumir” a história. É preciso reconhecer-se como um dos prisioneiros — e isso fere o orgulho moderno. Admitir que tivemos boa parte da vida enganada é um golpe que poucos suportam. É mais fácil rir de quem tenta mostrar a luz do sol do que encarar a clareza que denuncia nossas ilusões.

A sociedade atual tornou-se tão alérgica à verdade quanto aos prisioneiros à luz. A verdade não é confortável, não é moldável ao gosto do consumidor. Ela exige conversão, humildade e renúncia — virtudes em extinção. Por isso, o mito da caverna é hoje limitado a uma curiosidade escolar, encaixotado na prateleira de “filosofia introdutória”, quando deveria ser um alarme espiritual, um chamado para acordar.

A maior tragédia não é estarmos na caverna. É amarmos as correntes.
O homem contemporâneo não teme a escuridão — teme a luz.

sábado, 9 de agosto de 2025

As cruzes que ninguém vê — A vida oculta de um homem casado e sacerdote

 


As cruzes que ninguém vê — A vida oculta de um homem casado e sacerdote

Há cruzes que se erguem à vista de todos: o peso de uma enfermidade, o luto recente, a pobreza gritante, a solidão confessada. Mas existem aquelas cruzes silenciosas, escondidas no coração, que poucos percebem. São as cruzes do homem que, ao mesmo tempo, é esposo, pai e sacerdote — um chamado duplo que, em vez de se dividir, multiplicar-se em  exigências, renúncias e combates internos.

No altar da igreja, ele oferece o Corpo e o Sangue de Cristo. Na mesa de casa, parte o pão do cotidiano, com contas a pagar e filhos para educar. Entre uma homilia e uma conversa à beira da cama dos filhos, entre um sacramento administrado e uma pia de pratos acumulados, ele vive um sacerdócio que não cabe apenas na sacristia.

Há dias em que o peso do colarinho clerical se mistura ao peso da aliança matrimonial, e ambos pedem fidelidade total.

O apóstolo Paulo, ao escrever a Timóteo, não excluiu a possibilidade de um presbítero ser casado; pelo contrário, exigiu que ele fosse “marido de uma só mulher” (1Tm 3,2), capaz de governar bem sua casa como sinal de que saberá cuidar da Igreja de Deus.

Há pedidos de ajuda às três da manhã. Há telefones inesperados de paroquianos em crise, que acontecem no mesmo instante em que a esposa precisa de atenção ou um filho chora. Nessas horas, não há público aplaudindo o sacrifício, não há manchete enaltecendo o gesto. Há apenas a solidão do dever, sustentada por uma oração silenciosa:

“Senhor, ajude-me a não falhar com ninguém, mesmo que eu falhe comigo.”

São João Crisóstomo, ele que era um bispo oriental profundamente consciente das critérios pastorais, escreveu:

"O sacerdote vive entre o céu e a terra. Ele fala aos homens em nome de Deus e fala a Deus em nome dos homens. Sua vida é toda doação, e por isso, necessariamente, toda cruz."

(De Sacerdotio , II, 4)

O mundo espera que o sacerdote seja sempre paciente, sempre disponível, sempre irrepreensível. A família, por sua vez, precisa que ele seja presente, sensível e firme. E ele, no íntimo, luta contra o cansaço, o desânimo e a tentativa de fazer menos do que poderia. É uma guerra espiritual constante, onde a primeira trincheira é o próprio coração.

Nas igrejas católicas orientais, desde os tempos apostólicos até hoje, muitos padres são homens casados. Não é uma concessão moderna, mas uma herança viva. São exemplos de que a fidelidade a Deus pode florescer no terreno do matrimônio e do altar, desde que a cruz seja abraçada com amor.

O Concílio de Trullo (692), reconhecido pela tradição oriental, reafirmou essa prática: o presbítero casado deve viver uma vida conjugal com pureza e governar sua casa de forma irrepreensível, lembrando sempre que sua primeira esposa espiritual é a Igreja.

Não é uma vida de perfeição exibida, mas de santidade construída no segredo. Deus vê. Deus sabe. E é Ele quem transforma a fadiga em oferta, as lágrimas em sementes, a renúncia em coroa.

Ser homem casado e sacerdote é viver entre dois amores que se completam: o amor esponsal pela esposa e filhos, e o amor esponsal pela Igreja. E é na cruz invisível do dia a dia que estes dois amores se encontram no Cristo que também amou até o fim.

São Gregório Nazianzeno descreve o ministério como um fogo que consome o sacerdote por inteiro:

"Não posso ser meio de Deus e meio do mundo. Onde Deus me colocou, devo ser todo Dele, ainda que minha carne sinta o peso e minha alma se incline ao descanso."

(Oratio 2, De fuga sua )

As cruzes que ninguém vê talvez sejam as mais pesadas, justamente porque ninguém ajuda a carregá-las… a não ser Cristo. E é no abraço dessa cruz que o homem casado e sacerdote descobre, dia após dia, que sua vida não é dividida, mas consagrada inteiramente, em todos os altares — o de pedra e o do lar.

E assim, enquanto o mundo vê apenas o homem que prega e celebra, o Céu contempla o servo que, com as mãos calejadas pelo trabalho e pelo cuidado da família, eleva também o cálice da salvação, oferecendo-se inteiro por amor. 

 

 

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